quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Homem e Computador


John Kemeny (1974). Homem e Computador. Cia. Gráfica Lux.

Cruzei-me, num daqueles bons acasos, com uma edição brasileira deste livro. Sou grande fã do retrofuturismo, de ir ler o que há décadas atrás se escrevia e especulava sobre o impacto da ciência e tecnologia da época, e das tendências de futuro. São geralmente leituras interessantes, que nos recordam as esperanças que no passado se depositavam nos futuros, nos fazem sorrir com alguma da inocência com que extrapolavam impactos sociais da tecnologia, e nos levam a refletir nos caminhos que o desenvolvimento realmente trilhou. 

Não são leituras para se fazer no espírito de desprezo sardónico, apontando as falhas de previsões e as especulações que se revelaram infundadas. Estas visões de futuro são datadas, dizem-nos muito sobre o espírito da época em que foram escritas. Recordam-nos que as nossas visões contemporâneas, que acreditamos serem as corretas, terão o inevitável destino de parecerem datadas às gerações futuras. O pó dos tempos é implacável a apagar o fulgor epocalista.

John Kemeny não foi um divulgador especulativo, ao estilo de um Asimov ou do casal Toffler. A sua visão do potencial futuro do computador alicerça-se no seu trabalho como co-criador da linguagem de programação BASIC e reitor da universidade de Darthnouth. Aos nossos olhos, salta a vista o pormenor em que o livro se revela realmente desatualizado - a insistência na tecnologia de time-sharing. Kemeny concebia um futuro onde o acesso à informática se democratizaria através da acessibilidade de terminais ligados por linhas telefónicas a computadores centrais. Algo que de facto aconteceu com a Internet,  mas sob o princípio de interligação de computadores autónomos.

De resto, as suas visões (recuso o termo "predições", pois fala-se de tendências e não previsões oraculares) estão muito em linha com as tendências que a computação seguiu. O computador tornou-se, de facto, essencial na sociedade, interligando utilizadores, permitindo novas formas de interação, marcando impacto na economia. Hoje temos o alastrar de telemóveis em vez da proliferação de terminais ligados a mainframes, mas os princípios basiliares estão lá.

Como professor que sou, li com particular atenção a sua visão do impacto do computador na educação. Uma visão que se baseia na sua própria experiência como professor. Para mim, o interessante e significativo é ver que Kemeny partilha ali dois tipos de discurso que hoje são prevalentes na educação. Primeiro, o uso do computador como elemento de aprendizagem instrucionista, como meio de acesso a informação e conteúdos, e treino em exercícios com o potencial de tutoria individual. O grande foco é colocado nesta vertente, e nisso não varia muito das vagas de tecnologia na educação, que sublinham sempre estes aspetos algo redutores da riqueza dos processos de aprendizagem. O intrigante, é Kemeny terminar este capítulo a observar que a influência mais profunda do computador na aprendizagem que viu foi o desenvolvimento da fluência e autonomia em processos complexos quando os seus alunos davam passos na programação, muito mais ricas do que a simples instrução por acesso a informação e treino rotinado de exercícios. Recordou-me a visão de Seymour Papert, subjacante às transformações profundas que o digital pode propiciar na educação - isto, se for usado como ferramenta de apropriação pelos alunos, e não como mero canal de instrução.