domingo, 10 de outubro de 2021

Fórum Fantástico 2021: As Escolhas do Ano


Regressa o Fórum, e com isso o tradicional painel das escolhas literárias do ano, as minhas, da Cristina Alves e, este ano, por impedimento do "Tio" João Barreiros (o nosso mestre e inspirador), do Rogério Ribeiro. Diria que este ano, as escolhas são injustas. Tanto que foi lido no hiato pandémico que poderia estar aqui em destaque, mas somos obrigados a condensar, senão seria um dia e não uma hora de painel. Deixo-vos aqui as minhas escolhas. Creio que o Rascunhos publicará uma nota sobre as da Cristina e do Rogério.

Ficção Científica

Carlos Sísi, Homine Ex Machina

Este é talvez dos livros de ficção científica mais cândidos na sua abordagem à inteligência artificial, num sentido voltairiano de profundo otimismo. Sisí imagina uma inteligência artificial generalista benévola, um algoritmo que se desenvolve sempre a pensar no bem estar da humanidade. É uma perspectiva diferente do habitual catastrofismo ao estilo exterminador implacável, muito inocente e que se sustenta no lado mais otimista das tendências de impacto destas tecnologias na sociedade.  Inocência não implica simplismo, e Sisí esforça-se imenso na construção do mundo ficcional para mostrar que analisou o tema, e é capaz de sustentar a história em premissas sólidas e linhas narrativas interessantes. Talvez se esforce demais, os infodumps abundam, bem como aqueles tiradas explicativas em que um personagem explica algo a outro, como forma do escritor falar ao leitor. Há capítulos, e linhas narrativas, que foram claramente criadas sem mais nenhum propósito do que enquadrar a história de fundo. 

Martha Wells, Network Effects

Nem sempre a FC tem de ser interventiva ou de especulação profunda, por vezes o que precisamos como leitores é de uma boa aventura. Este livro preenche estas condições, embora assente num excelente mundo ficcional que nos é revelado sem fricções ou infodumps, vamos reconstruindo-o na nossa mente de leitores seguindo as interações dos personagens. A narrativa é pura aventura, saltamos de peripécia em peripécia, acompanhando o robot (cyborg seria um termo mais apropriado) assassino que, de facto, é uma máquina otimizada para garantir a segurança dos seus clientes, com extremo prejuízo para os que considerar ameaça. A diferença face aos restantes robots do género é que este é um robot livre, não está sob controlo de uma empresa, e trabalha numa zona do espaço colonizado onde as formas de governo são mais humanistas. Deve a sua liberdade à inteligência artificial de uma nave.

Walter Jon Williams, The Praxis

Não resisto a uma boa space opera. Toda a ambiência operática, as grandes vistas e aventuras entre os despojos de vastos impérios galácticos, é algo que sempre me seduziu. É FC como vasto panorama, de ideias e conceitos levados aos limites, mas também FC de entretenimento, porque às vezes, o que precisamos mesmo é de uma boa história de aventura no espaço. The Praxis é a clássica história de um império que se desmorona, mas o autor demora, deliberadamente, a arrancar a ação. Uma parte substancial do livro é passada a construir, muito lentamente, as personagens, e a mergulhar-nos num mundo decadente de clientelismos e visões imutáveis da sociedade. Mas, quando o lado de ação arranca, é com estrondo e num ritmo imparável. Percebe-se o contraste, entre a lentidão da decadência, e a rapidez da derrocada.

Fantástico

Altino do Tojal, O Oráculo de Jamais

Sabemos que nos espera o inesperado quando lemos que o cão que acompanha um par de caçadores se chama Solipim, e gosta muito de tocar pandeireta quando sente que o dono está triste. Embora este delicioso romance de Altino do Tojal não se debruce muito sobre dotes musicais caninos. Segue por outros caminhos, sempre inesperados, num formato narrativo de tríade muito similar ao de Orvalho do Oriente, a outra obra de Altino que li. Não é muito correto tirar ilações sobre a obra de um escritor com dois meros livros lidos, mas o paralelo estrutural é visível, os dois romances seguem a mesma estrutura. Cruzam um número mínimo de personagens principais, o primeiro capítulo foca-se mais numa delas, o segundo noutra, e o terceiro é um devaneio de fantasia que termina naquele que é o pior dos artifícios literários - o "afinal, era tudo um sonho".


W.H. Pugmire, Bohemians of Sesqua Valley

 É provável que não conheçam o vale de Sesqua e os seus estranhos habitantes. Também não conhecia, até a minha curiosidade ter sido desperta por um texto sobre W.H. Pugmire, o excêntrico criador deste mundo ficcional. Personalidade queer e quirky, claramente um apaixonado pelo horror na veia mais clássica, amante e seguidor da prosa lovecraftiana. De certa forma, é um escritor de segunda linha, o seu trabalho é assumidamente derivado do de Lovecraft, mas consegue escrever sem imitar diretamente ou em pastiche. Até porque, lendo as aventuras dos boémios habitantes do vale, depressa percebemos que a estrutura lovecraftiana está lá, quer como pano de fundo quer com referências diretas aos mythos de Cthulhu, mas a voz de Pugmire segue outros caminhos, de um terror mais bucólico e poético do que a rendilhada grandiloquência cósmica de Lovecraft.

Manel Loureiro, La Puerta

Manel Loureiro mistura as tradições galegas com um belíssimo thriller onde o sobrenatural e o policial se cruzam. O ritmo é marcado, e o livro é daqueles que não se descansa até chegar ao fim. A trama é urdida sempre aguçando o interesse, e os caminhos narrativos levam a um final inesperado. Para além disso, sobressai a omnipresente paisagem invernosa do interior galego, onde nas aldeias isoladas subsistem crenças e tradições que datam de tempos longínquos. Lendas de que o escritor se apropria, com a devida vénia, para nos contar uma belíssima história de terror.

BD/Comics/Manga

Dylan Dog: O Imenso Adeus

by Mauro Marcheselli, Tiziano Sclavi, Carlo Ambrosini

Talvez o que mais seduz nesta história seja o seu profundo onirismo. Reduzida aos seus elementos essenciais, O Imenso Adeus é ao mesmo tempo uma história de fantasmagorias e de remorsos pela dificuldade em confessar o amor. Percebemos isso muito depressa, vemos logo qual é o caminho da narrativas. Mas nestas coisas da boa literatura, não é só o destino que interessa, mas sim o percurso. É aqui que esta longa despedida nos cativa

Junji Ito, No Longer Human

Em No Longer Human, Junji Ito está firmemente no campo do horror psicológico, do terror que vive no interior do ser humano. Esta adaptação, eficaz, de uma obra sobre a incapacidade de se adaptar à convivência com a humanidade é profundamente inquietante. Ito usa com mestria e equilíbrio a sua estética para nos provocar desconforto, sublinhando o caráter desta história sobre a desumanidade interior.

Paulo Mendes, O Penteador

O Penteador é um livro sobre tudo, e sobre nada. Sobre as coisas simples, a amizade, o convívio, os sorrisos, o lado báquico da vida. Uma excelente e discreta surpresa, um dos melhores livros que li este ano. Um livro que nos deixa a sorrir, com o seu humor destravado embora discreto. Algo que, nos tempos que correm, é especialmente tocante. 

Box Brown, Tetris: The Games People Play

Uma história sobre o confuso processo de licenciamento do jogo Tetris, que na verdade é um elegante ensaio sobre o fascínio que o jogo exerce sobre nós. O foco do livro está na história da criação daquele que é talvez o jogo mais jogado de sempre, criado por Alexei Pajitnov na Moscovo dos últimos anos do império soviético. Esta banda desenhada, ilustrada num estilo muito pessoal, olha para a história do Tetris, e com isso para a história dos videojogos. Mas o que a torna interessante é a sua visão sobre a psicologia do jogo, a sua importância histórica e cognitiva, bem como a sua relação com a arte. Em suma, aquelas coisas aparentemente fúteis que nos revelam a alma humana. 

Não Ficção

Irene Vallejo, El Infinito en un Junco

Um longo ensaio sobre a história do alfabeto, que é em si uma declaração de amor à literatura. Vallejo leva-nos às origens da leitura e escrita, focando-se em dois grandes polos - Grécia e Roma. Não que ignore as civilizações que as antecederam. O livro debruça-se também sobre o Egito, a Mesopotâmia e, inevitavelmente, a Fenícia. Mas se da Mesopotâmia herdámos os primeiros sistemas de escrita, do Egito o papiro, e da Fenícia a simplificação das linguagens ideogramáticas para a simbologia fonética, não herdámos deles muito que nos apaixone, em termos literários. Tabuinhas de barro com contabilidade e papiros administrativos dizem-nos algo sobre esses antigos povos, mas pouco sobre os homens e mulheres que eram. Restam poucos textos literários, a maioria eram utilitários, a escrita era uma ferramenta. Talvez as exceções sejam os mitos egípcios, o Épico de Gilgamesh ou as orações gravadas nas tumbas ou em tabuinhas de barro. Mas falta, nestes longos primórdios, duas das vertentes que sustentam o nosso uso das letras: a busca pelo conhecimento, e a transmissão do sentimento individual.

Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares - Fernão Mendes Pinto

Um livro monumental, pelo tamanho e ambição. Resume, romanceia e essencialmente aproxima-nos da Peregrinação de Fernão de Mendes Pinto, ao mesmo tempo um clássico histórico da literatura portuguesa e um relato das inúmeras aventuras vividas pelos portugueses que, no século XVI, iam para a Índia em busca de riquezas. Glória e expansão da fé, diz-se oficialmente, mas na verdade, era o lucro a qualquer custo que motivava à aventura. De certa forma, a autora traduz para os leitores uma obra cuja leitura original não nos é fácil, não só pelo estilo mas pelas mudanças linguísticas. As aventuras, ou melhor, desventuras de Mendes Pinto são contadas não como relato, mas como romance, dando à história um caráter de aventura pura. O romancear torna este pesado livro numa leitura leve, estruturada em pequenos capítulos que nos contam episódios da Peregrinação, e não só. A autora consultou uma enorme quantidade de fontes históricas que complementam, ou dão outras visões, sobre as histórias de Mendes Pinto.