quinta-feira, 24 de outubro de 2019

The Grand Dark


Richard Kadrey (2019). The Grand Dark. Nova Iorque: Harper Voyager.




Suponho que este seja um rito de passagem para escritores do fantástico. Nalgum momento da sua carreira literária, têm de escrever o livro onde o urbanismo fantasista seja o foco. Para alguns, isso é praticamente a carreira deles - China Miéville é o exemplo que salta à mente. Outros ficam-se com a narrativa onde o world building urbano é a essência literária. Com este Grand Dark, Richard Kadrey junta-se ao clube dos urbanismos feéricos.

Sabem a que tipo de cidade me refiro. Não retrata a banalidade da arquitetura internacional trazida pelo alto modernismo abstrato de Le Corbusier. Também não é a metrópole galáctica das infindas variações de Trantor na ficção científica, do O'Neill orbital à cidade planetária. Nem o neo-medievalismo acastelado com toques de orientalismo da fantasia. São urbanismos imaginários híbridos, complexas geografias que mesclam elementos vitorianos (ou fin de siécle, para os mais europeístas), toques de exótico, elementos tecnológicos e densas texturas de bairros habitados por estranhas populações. No fundo, versões mais carnudas do imaginário das cidades invisíveis de Calvino.

Kadrey, depois de uns anos a explorar o divertido filão das aventuras sobrenaturais de Sadman Slim, muda de registo com a sua intrigante Lower Proszawa. Como a descrever? Tem a decadência jazz age de Berlim durante a República de Weimar, talvez a sua grande fonte de inspiração (toda a sucessão de nomes germânicos ajuda a criar esta impressão). Não escapa a um certo ar pós-apocalíptico, com luxo e ruínas num pós-guerra periclitante. Socorre-se de um estilo entre o steam e o dieselpunk, robots mecânicos dotados de inteligência artificial dividem a cidade com criaturas híbridas produzidas por engenharia genética, sobreviventes mutilados da guerra que ocultam as feridas debaixo de máscaras de ferro, e os habitantes díspares entre a pobreza e o luxo. O ambiente é libertino e opressivo, numa cidade dominada por um governo imperialista, vigiada por uma implacável polícia secreta combatida por diversos grupos rebeldes. Há dois grandes pólos, que irão focalizar a narrativa. O decadente teatro Grand Dark, onde a população vem ver violentas peças de extremo grand guignol, com a morbidez mitigada pela representação ser feita por marionettes robóticas controladas pelos atores. A imensa fábrica Schonen Maschinen, motor económico da cidade, onde são produzidos formidáveis armamentos, complexos mecanismos dotados de variáveis graus de inteligência artificial, ou criaturas híbridas produto da engenharia genética. Toda a vibração transmitida pela cidade tem o seu quê de uma Metropolis (a de Fritz Lang, não a de Siegel e Shuster) com elementos que espelham a nossa preocupação contemporânea com genética e inteligência artificial. No entanto, apesar de interessante, esta Lower Proszawa de Kadrey tem o seu quê de formulaica, de construir um mundo ficcional misturando os elementos estéticos necessários. O que, do que conheço deste autor, se aplica à generalidade das suas obras.

Há uma história a fazer de linha condutora para o mergulho do leitor em Lower Proszawa. Um dos problemas deste livro é o tempo que demora a ganhar ritmo, cerca de metade é um longo périplo pela cidade, enquanto Kadrey nos vai mostrando as peças do seu xadrez narrativo. Ajuda, neste aspeto, que o personagem principal seja um ciclista mensageiro, que faz do atravessar as ruas da cidade a sua vida.

Jovem e inocente, a escapar da pobreza extrema de onde veio mas sem se atrever a sonhar com mais do que a sua vida ao serviço de uma empresa de correio, enamorado e correspondido por uma jovem atriz que lhe dá acesso ao mundo boémio da cidade, este personagem irá descobrir que o mundo, afinal, não é tal como o percepciona. O seu emprego como correio torna-o um agente insuspeito da temível polícia secreta, sem que tal disso aperceba até se ver metido numa confusão catastrófica. Os seus melhores amigos são agentes das forças rebeldes que se revoltam contra o regime. E a mulher que ama talvez não seja totalmente humana, numa cidade onde os poderes instituídos andam a experimentar com a mistura não natural de genética e inteligência artificial para criar novos cidadãos, mais obedientes do que as massas infetas da cidade.

Quando a história ganha energia, revela-se um tour de force em ritmo imparável. Ficamos até ao final para perceber como as diferentes linhas narrativas convergem para solidificar o mundo ficcional, e somos surpreendidos a todos os passos por uma nova possibilidade. O grande elemento iconográfico é a cidade, mas a narrativa que Kadrey engendra no seu interior é em modo alta aventura, imprevisível, decadente e high tech distorcido. Vale a pena o mergulho nas ruas de Lower Proszawa.