quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Gnomon


Nick Harkaway (2017). Gnomon. Londres: William Heinemann.

Este é um livro que demora tempo a revelar-se. Cheio de histórias dentro de histórias, desafia-nos num longo e contínuo puzzle de realidades que se intersectam e influenciam. Desde o início, somos levados a assumir que existe apenas uma que é a real, a base conceptual do livro, mas a constante colisão dos restantes fios narrativos coloca sempre essa visão em questão. Uma constante sensação de fluidez do irreal, que culminará na percepção que a mais sólida e tangível das personagens não é, ela própria, real. 

Gnomon é despoletado por uma investigação a uma morte que não deveria ter acontecido. Estamos num futuro próximo, num Reino Unido pós-brexit que mudou radicalmente a sua forma de governo. Não há parlamento nem rainha, há cidadãos individuais que são aleatoriamente escolhidos para comités de análise e proposta, com votações globais para cada decisão estrutural. Tudo isto é tornado possível por uma sociedade de hipervigilância eletrónica. Um sistema de transparência total, que tudo sabe sobre todos, e que permite esta forma de aparente democracia total, em que todos estão envolvidos em tudo. Transparência total implica que a informação individual seja pública, e que o sistema seja capaz de conhecer e distinguir cada um através de marcas identificadoras avançadas, desde a análise da forma como se move ao connectome mental. Algo que é visto como uma forma superior de governo, equalitária mas mantendo a ilusão de liberdade individual numa sociedade radicalmente transparente. 

Numa sociedade destas, o crime é impossível, o sistema prevê as ações dos indivíduos e canaliza-as noutras direções. Mas acidentes acontecem, e a morte inesperada de uma mulher sob interrogatório psicólogico obriga a uma investigação. Uma inspectora - testemunha, do sistema mergulha nas gravações das memórias da vítima, mas nada a prepara para o que irá encontrar. Dentro das suas memórias encontram-se outras, à primeira vista criadas para confundir o sistema, mas que na verdade estão entrelaçadas para conduzir a investigadora à verdade fundamental. 

Vivem outros dentro da mente daquela que aparenta ser uma inócua rebelde, escritora de livros que não se conseguem encontrar em nenhuma livraria (o pormenor dos ghost books, livros lendários que todos conhecem mas ninguém se lembra de ter lido, que aparecem nos registos bibliotecários mas nunca ninguém consegue localizar um exemplar, é uma das delícias desta história). 

Conhecemos uma mulher sábia da antiguidade clássica, ex-amante de um dos grandes sábios da igreja católica, que vive em Cartago com a sua sabedoria, a memória do filho morto, e se vê envolvida da investigação de um artefacto impossível, uma câmara dedicada à deusa Isis, capaz de revelar os segredos do mundo. Algo cuja tangibilidade a surpreende, uma vez que faz parte de um pergaminho falso que criou para enganar alguns dos sábios mais convencidos da sua infalibilidade na academia. Mergulhando mais fundo, descobrimos um prodígio da matemática grego, cuja vida mudou radicalmente depois de se ter cruzado com um  tubarão ao mergulhar no Egeu, um encontro que lhe parece ter conferido um sentido extra para as finanças, e que o levará aos píncaros da elite um percentista, acima de todas as leis e países. Entretanto, a economia grega colapsa sob efeito das medidas austeritárias, e ver-se-á nas mãos de uma seita liderada por monge ortodoxo, que vê no toque do tubarão o sinal que o financeiro é o escolhido, capaz de invocar a câmara de Isis, e fazer nascer um novo mundo. Antigo artista africano influente dos anos 60, agora exilado em Londres depois de escapar à prisão na Etiópia, um agora idoso etíope descobre um novo sopro de inspiração artística ao ver-se envolvido no design de um jogo de computador. A sua estética é posta ao serviço da criação de um mundo virtual, uma sociedade futurista governada por algoritmos de inteligência artificial (se toparam a analogia com o ponto de partida do livro, este é um dos muitos jogos que Nick Harkaway faz com a sua história). Dentro do jogo, um Easter egg secreto, que dá acesso a uma câmara de Isis virtual. Num futuro longínquo, uma consciência que se divide por uma multiplicidade de corpos é infectada pela ideologia de um planeta vivo, e descobre-se incorporada na Londres do sistema, parte integrante desta história de níveis que se entrecruzam. No âmago mental, a real personalidade da mulher falecida refugia-se na ilusão de um submarino nuclear. 

Na verdade, a morte não é acidental, foi um suicídio elaborado destinado a, através do mergulho nas diferentes falsas memórias, indicar à investigadora as pistas para deslindar o real crime perpetrado. É aqui que o livro se revela, finalmente (este finalmente é porque a história peca pelo seu alongamento). O problema está no próprio sistema, que aparenta ser totalmente transparente, mas não o é. Evoluiu para ser mais do que uma ferramenta ao serviço dos cidadãos, condiciona ativamente as suas percepções do que é real, e é dominado por uma organização cinzenta que determina os caminhos das decisões. 

Despojado das suas camadas de ofuscação narrativa, Gnomon é uma profunda meditação sobre os perigos de uma sociedade mediada por informação electrónica. Sem a experiência tangível dos factos, resta-nos confiar na fiabilidade da informação que nos é dada pelos media. Algo que, como é muito notório na nossa sociedade contemporânea, pode ser facilmente enviesado por interesses específicos, que vão da clássica desinformação política e estatal ao extremar de discursos nas redes sociais como forma de maximizar rendimentos publicitários (é a razão pela facilidade com que os discursos violentos e radicalizdos parecem tão prevalentes nas redes sociais, atraem a atenção que os seus gestores precisam para maximizar lucros). Algo que se intensifica com a introdução na equação social de algoritmos de inteligência artificial, usados de forma acrítica e pouco transparente em sistemas de apoio a decisões com impacto entre o local e o global. Por caminhos muito ínvios, perpendiculares à nossa experiência, Gnomon é uma meditação sobre a nossa contemporaneidade mediada pelos media digitais, um aviso sobre a confiança que depositamos nos ambientes que formam a nossa percepção do mundo que nos rodeia.