quinta-feira, 3 de dezembro de 2015
Nemesis Games
James S. A. Corey (2015). Nemesis Games. Nova Iorque: Orbit.
A série Expanse começa a revelar-se frustrante. A tendência dos autores para contarem sempre a mesma história em todos os livros desperdiça aquilo que poderia ser uma excepcional space opera, reduzindo-a a intrigas bizantinas repetitivas. Cada novo livro lê-se como um episódio de série televisiva, daquelas cíclicas onde as peripécias repetitivas de cada episódio são balizadas por um conflito de pano de fundo que fornece motivação aos personagens mas raramente tem espaço de desenvolvimento, excepto em momentos de charneira nas continuidades.
Torna-se ainda mais frustrante pela sua qualidade. A técnica narrativa é excelente, aprimorada na forma como usa o ritmo sequencial de capítulos que terminam em suspense, e ficamos agarrados às paginas mesmo quando se percebe a léguas por onde irá caminhar a história. O mundo ficcional continua sólido, mostrando que é possível ter-se FC e space opera clássicas sem regredir à misoginia xenófoba e reducionista tão amada pelos sad/rabid puppies. A visão de uma expansão humana pelo sistema solar, fragmentada entre Terra, um Marte independente e míriades de estações espaciais ou colónias nas principais luas do sistema assenta em plausibilidade técnica e científica, e é feita com um enorme respeito aos contextos de multiculturalidade. As culturas espaciais são o resultado de uma amálgama de etnias e a sua interconexão gera o que de facto se tornam novas culturas. Com personagens femininas fortes e interventivas. Tudo isto sem esquecer a aventura pura e as divertidas e bem montadas batalhas entre naves espaciais. Elementos que traduzem uma complexidade conceptual que está a anos-luz da tradição clássica desta vertente da FC, que na sua maioria poderia ser caracterizada como a expansão do homem branco anglo-saxónico pelas fronteiras do oeste galáctico.
Neste quinto episódio da série Expanse (lamento, mas se algo neste livro é assumido é que os livros funcionam como guiões sequenciais e não obras auto-contidas), o delicado equilíbrio entre as Nações Unidas da Terra, o governo marciano e a organização quasi-governamental que se assume como uma nação dos belters, habitantes da cintura de asteróides é estraçalhado com extremo prejuízo. Uma facção radical dos belters conseguiu apropriar-se de boa parte das naves da poderosa marinha espacial marciana e lançam um conjunto de ataques coordenados em simultâneo ao governo marciano, ao centro dos estaleiros espaciais que funcionam como capital dos independentistas, culminando no lançamento de três asteróides que embatem com a Terra, colocando em perigo a sobrevivência do único planeta do sistema solar capaz de albergar vida. A justificação para a acção terrorista está no sentimento prevalente entre os belters, homens e mulheres de corpos habituados à vida em micro-gravidade e por isso incapazes de viver em ambientes planetários, são tornados redundantes e condenados à extinção pela expansão humana para os novos mundos acessíveis através do portal espacial criado pelos artefactos automatizados das misteriosas forças alienígenas. Ou seja, mais uma iteração das tensões entre as várias facções humanas que têm dado o mote a todos os livros da série.
De fora fica, como habitual, o elefante da sala: os artefactos biológicos alienígenas, todo o universo tornado acessível por uma tecnologia milenar que antecede a humanidade, o mistério das civilizações avançadas e desaparecidas capazes de esterilizar sistemas solares inteiros, as incógnitas dos planetas que começam agora a ser colonizados. O livro anterior, Cibola Burn, tocava nestes aspectos apesar de inevitavelmente se focar nos conflitos entre facções humanas. Neste, há alusões soltas e algo misterioso a finalizar um livro intencionalmente inconclusivo, mas de resto o maior ponto de interesse da série Expanse é colocado completamente de lado em mais um amontoado de desventuras às voltas com intrigas políticas explosivas. Suspeito que um dos escritores que se oculta debaixo do pseudónimo de Corey, ao trabalhar com George R.R. Martin, de quem é colaborador, ficou infectado pela prosa verborreica de intermináveis conspirações bizantinas que se desenrolam em sólidos mundos ficcionais.
Outro elemento que falha redondamente neste livro da série é a tentativa de dar profundidade às personagens principiais. Se se encher de ar um desenho pintado num balão, este não deixa de ser um balão. A dispersão de Holden e companheiros por vários cenários ajudam a aprofundar as diferentes linhas narrativas do romance, mas falham na tentativa de adensar com o regresso aos seus passados. Neste ponto, é este o livro que assume o quanto Expanse tem o seu quê de cópia descarada de Firefly. Era algo que se notava deste o início, com a história centrada nas aventuras de um capitão independente que com a sua fiel tripulação e a sua nave navega pelas ondas tortuosas do sistema solar, lutando sempre pela sua visão do que é justo. Quatro tripulantes, que neste episódio se tornarão seis, com o recuperar de personagens importantes de livros anteriores. Num toque romântico, todos os tripulantes serão casais. E se as linhas que intersectam os personagens principais são variáveis, a sua iconografia replica quase textualmente Firefly de Joss Whedon. Temos o comandante Holden, carismático, libertário, lutador, justo. A experiente oficial executiva, mulher de armas e competência técnica. O algo esquisito mas hiper-competente piloto. O brutamontes com coração e código de ética pervertido, mas que segue fielmente o seu comandante. Ao qual se junta uma mulher de acção e uma rapariga fugitiva à justiça, que num outro romance foi uma personagem que modificou o seu corpo para o tornar numa arma e vingar-se de Holden. É uma variante mais romântica da tripulação da nave Serenity. E não resisto a apontar este pormenor. Firefly assumia com alguma ironia o seu carácter de western in space, algo que se notava em pormenores como a nave Serenity se assemelhar muito a um cavalo. Na série Expanse as naves são plausíveis e utilitaristas, sem concessões a estéticas aerodinâmicas, mas a nave de Holden chama-se Rocinante. Que, caso o vosso D. Quixote esteja algo enferrujado, é o nome de um cavalo.
Do ponto de vista de um leitor conhecedor do género, fica a sensação de desperdício, de uma série bem montada e bem escrita que poderia ser muito mais do que um divertido desligar de cérebro. Expanse nunca se assumiu como o género de FC que se preocupa com as grandes questões, sempre se mostrou como uma forma inteligente de aventura no espaço. É entretenimento bem montado, mas poderia ser algo mais. Irá, aposto, funcionar muito bem na sua encarnação como série televisiva. O primeiro episódio pareceu prometedor e desmontou a série não como um esforço literário mas como uma base transmedia para narrativas audiovisuais, onde é muito mais fácil e barato espremer o produto com infindas intrigas bizantinas envolvendo personagens carismáticas em cenários bem concebidos do que arriscar voos mais ambiciosos.