terça-feira, 25 de agosto de 2015

Os Últimos Contos de Cantuária



Jean Ray (1983). Os Últimos Contos de Cantuária. Lisboa: Vega.

Memorizei o nome de Jean Ray numa das sessões da tertúlia Sustos às Sextas, quando alguém, provavelmente o classicista António Monteiro, trouxe Malpertuis à baila. Por isso, ao deparar com esta edição amarelecida, nem pestanejei. Aconteceu numa destas tardes de verão, povoadas por hordes de turistas em Óbidos, onde aproveitei para vasculhar os alfarrábios da Livraria do Mercado em busca de preciosidades literárias. Algo mais difícil do que parece num espaço com um enorme acervo, mas muito pouco daquilo que desperta o olhar de leitores de ficção científica e fantástico. Mas não deixa de permitir colher algumas curiosidades intrigantes, como este livro de Ray. Que, diga-se, é uma delícia literária composta de curtos contos.

Inspirando-se nos contos homónimos de Chaucer, reúne um grupo peripatético de viandantes improváveis de várias eras que se cruzam numa noite escura, na taverna onde, seiscentos anos antes, os companheiros de viagem e de histórias de Chaucer tinham partido para Canterbury. Percebemos que estamos perante um livro muito especial quando é o próprio Chaucer a fazer as honras da antologia, confessando ao leitor que as distâncias temporais são quebradiças e fluídas. Leitor esse que chega à taverna pelas mãos do secretário de um clube literário de luminárias menores, cuja prodigiosa microscópica produção os leva a pertencer ao legado estabelecido postumamente por um milionário inglês com um peculiar sentido de humor.

Sentido de humor, de uma forma elegante e corrosiva mas também estranha e decadente, é uma das sensibilidades que caracterizam estes contos que se destacam especialmente por um apurado sentido do macabro, do cruel, do tétrico e do insólito. São pérolas literárias eruditas e decadentes do sangrento.

Que contos cruéis nos aguardam, prontos a saltar para nos surpreender de dentro das páginas amarelecidas? Temos restaurantes onde as iguarias têm proveniência canibal. Uma bruxa que se diverte a atormentar os carrascos no momento em que os cadafalsos de Tyburn entram em acção. Uma idólatra que encontra forma de sacrificar crianças a Baal na sua sala de estar. Um simpático carrasco de Tyburn que casa com uma mulher que tem uma segunda vida como assaltante de estradas. Um Falstaff irritado porque a memória literária recorda-o como bonacheirão e não pelos seus feitos militares. Um fantasma que se humaniza, para seu desespero. E muitas outras histórias de humor negro, de crueldade elegante, propiciadas por um ser que assumindo forma humana, é um Satã que se diverte.