sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

2001 Nights

Devo culpar o Rui Bastos por me ter feito cair esta estante dele em cima. Desconhecia de todo este manga de FC. Fui surpreendido pelo classicismo da FC Hard com uma vénia fortíssima a esse filme maior que é 2001, transmitindo o fascínio por toda a visão estética e filosófica a ele subjacente. Belíssma sugestão, a de este portento de manga, que se calhar não agradará ao grande público por se afastar da espectacularidade fantástica e apostar no rigor.



Yukinobu Hoshino (1996). 2001 Nights: The Death Trilogy Overture. VIZ Media LLC.

Uma obra notável e surpreendente. Ficção científica pura, em modo de space opera hard sf. 2001 Nights é um manga de histórias curtas e autocontidas, cada qual uma sólida narrativa que mistura rigor científico plausível com esse grande sonho da exploração espacial. Histórias contidas, mas sem ligação entre si. 2001 Nights não é um manga episódico em que seguimos as aventuras de um grupo de personagens. Não há qualquer continuidade entre as histórias, excepto temporal. Estas unem-se numa sequência mais ambiciosa, episódios isolados que no seu contínuo  nos mostram a real intenção do autor: contar num longo arco narrativo a sua visão de como o homem poderá espalhar-se pelas estrelas. Sem concessões ao aventureirismo infantil, batalhas com bug eyed monsters ou tecnologias tão fantásticas que parecem magia.

Suspeito de 2001 Nights não é um título inocente. Nota-se ao longo de todas as histórias uma profunda homenagem de Hoshino ao filme de Kubrick, quer pela visão filosófica do destino do homem nas estrelas quer pela sua estética meticulosa de futurismo plausível. Não é por acaso que as primeiras histórias quase repetem os principais momentos do filme, mas a série depressa se afasta dessa raiz e cresce por mérito próprio, mantendo sempre a vénia ao icónico filme.


Yukinobu Hoshino (1996). 2001 Nights:Journey Beyond Tomorrow. VIZ Media LLC.

Se no primeiro volume apontaria o filme 2001 como fonte principal de inspiração, neste não descartaria a influência das Crónicas Marcianas de Ray Bradbury. Não pelo tema, uma vez que a visão de Hoshino está mais dentro da Hard SF clássica de Clarke do que no futurismo nostálgico de Bradbury, mas pela estrutura. Tal como o livro, estas 2001 Nights estruturam-se como uma série de narrativas contidas, sem relação directa entre si, interligadas apenas por um tema abrangente. Cada nova história é, na visão do autor, um novo passo na colonização das estrelas.

Se no primeiro volume fomos da pré-história aos primeiros passos além do sistema solar, com naves geracionais e inteligências artificiais a irem onde o homem estava impedido de ir pelas distâncias relativísticas, neste Hoshino já introduz a ideia de viagem a velocidades translumínicas. O primeiro volume terminou com a descoberta de um planeta de anti-matéria no sistema solar, capaz de fornecer o combustível que permitirá à humanidade desenvolver a tecnologia de viajar para lá da velocidade da luz. Neste volume colonizam-se planetas e descobrem-se indícios de vida alienígena, alguma inteligente mas com um tipo de inteligência que escapa à percepção dos exploradores.

Sente-se o peso das datas. Parte das histórias aborda as rivalidades entre o bloco ocidental e o soviético, agora transpostas para as vastidões galácticas. Hoshino não nos dá aqui futurismos de inocência utópica. As velhas rivalidades, os vícios de sempre, os opressores e os oprimidos mantém-se neste futuro. Termina reflectindo que se as naves humanas conseguem saltar através do espaço-tempo, a relatividade é implacável. Se dentro da nave poucos meses passam em expedição, para o resto da humanidade o tempo passa como sempre passou. Suspeito que estará aqui aberta a porta para o próximo volume.


Yukinobu Hoshino (1996). 2001 Nights: Children of Earth. VIZ Media LLC.

Neste terceiro volume o carácter de FC clássica optimista na veia de Clarke é mais acentuado. Hoshino encerra o périplo pelas estrelas com duas notas. Por um  lado, o regresso da humanidade ao berço, exausta pelo esforço de colonização de planetas inóspitos ou pouco habituados à vida humana. Mas o espírito pioneiro de exploração continua vivo naqueles que nasceram no espaço, vivo o suficiente para se espalharem pela galáxia. São duas notas curiosas, também presente na FC clássica, o desmoralizar do berço da humanidade e o legado de curiosidade e gosto de exploração dos seus herdeiros.

Se as histórias que compõem a série são interligadas apenas pelo tema abrangente, há uma excepção. No primeiro volume um dos contos falava-nos de uma primeira tentativa de espalhar a humanidade pelas estrelas através de uma nave que continha adn congelado, pronto a iniciar a gestação de novos humanos assim que encontrasse porto seguro. Nave lenta, sub-lumínica, que levará séculos a chegar ao destino. No segundo volume regressamos a esse tema, com os descendentes do casal que doou o adn a terraformar um planeta que sabem ser o destino provável destes irmãos do passado ainda por nascer. No terceiro volume trata-se de uma expedição em nave geracional super-lumínica que recorre a este adn, agora com os festos crescidos e a brincar numa espécie de éden, como recurso de diversidade genética para a sua longa viagem. Basta-me este exemplo para se perceber de que forma este manga é rigoroso e cerebral no seu futurismo, sem ceder à FC como espectáculo de aventuras.

Num pormenor inteligente, Hoshino não cruza a humanidade com civilizações extraterrestres, embora não fuja ao tema da vida alienígena com soluções muito inventivas. A melhor delas é um planeta cuja vida vegetal, ameaçada pela instabilidade dos sóis que iluminam o sistema, evoluiu para lançar para o espaço as suas sementes usando uma forma biológica das velas solares impulsionadas a laser. Mas nada de bug eyed monsters, ou primeiros contactos. Não há impérios e hegemonias, nenhuma batalha espacial. 2001 Nights lê-se como o livro de registos de exploração de um novo continente, passado nas frias vastidões estelares.