quarta-feira, 21 de maio de 2014

The Warlord of the Air


Michael Moorcock (1971). The Warlord of the Air. Nova Iorque: ACE Books.

É nestas alturas que as etiquetas se revelam empecilhos. A tentação de descrever este livro como um excelente exemplo de obra proto-steampunk é muito grande, mas fazê-lo seria um grave erro. The Warlord of the Air não foi conscientemente escrito para iniciar um novo movimento literário, e categorizá-lo como proto-qualquer coisa é uma falta de rigor similar à que explica classificações de Wells ou Verne como escritores steam. Há quem o faça, por gritante que pareça. O problema é que hoje é impossível ler este livro sem ser pelas lentes de umas goggles mecanicistas, graças à influência do género. É um crédito para a sua evolução e implementação na cultura popular, mas há que sublinhar que não é o género que marca este livro. É o seu oposto. A ousada iconografia desta obra de Moorcock é uma das centelhas do movimento, fonte de inspiração para a sua estética tão especial.

The Warlord of the Air é uma intrigante e bem urdida experiência de Moorcock no campo das ucronias. A história do Capitão Bastable, oficial colonial que ao tentar pacificar uma discreta mas aguerrida tribo que se mantém irredutível numa misteriosa cidade doa Himalaias se vê no meio de um arrasador terramoto e desperta décadas depois num quase irreconhecível mundo futuro replica um elemento clássico da ficção fantástica, do Rip van Winkle de Irving ao John Carter de Burroughs ou Buck Rogers de Nowlan, todos heróis que acordam em futuros longínquos ou mundos de fantasia.

Moorcock aproveita para fazer um delicioso What If, equacionando um século XX onde as potências ocidentais não se aniquilaram nos campos de batalha da Flandres. O imperalismo colonialista que caracterizou o final do século XIX é aqui extrapolado pelo século XX dentro, com as tensões do Grande Jogo colonial mantidas artificalmente vivas por um consenso entre as Potências que incluem, para além dos suspeitos do costume, uns Estados Unidos fãs de estenderem o manto de protectores sobre a Indochina, um assertivo império nipónico que vai modelando um novo Japão numa China dividida entre enclaves coloniais e territórios controlados por senhores da guerra, e um império russo que cedeu às pressões democratizantes mas não se desagregou em sovietes. Resta, como esperança de um mundo diferente e pós-colonial, um senhor da guerra chinês que congrega no seu bem defendido território anarquistas, rebeldes e dissidentes de todo o mundo e desenvolve novas armas capazes de defrontar as bem armadas frotas de dirigíveis imperiais - ágeis aeronaves mais pesadas do que o ar, capazes de abater os pesados zeppelins, e uma arma suprema desenvolvida por físicos dissidentes que será lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshima, ponto de encontro das frotas aladas aliadas que se congregam para aniquilar a cidadela do progressista senhor da guerra que está a provocar inquietação em todo o mundo colonizado.

É neste cenário que se move Bastable, salvo das ruínas himalaias por um dirigível da polícia fronteiriça do Raj anglo-indiano. É levado às glórias urbanas de Bombaim e Londres, cidades que resplandecem de utopia retro-arquitectónica. Atravessa os domínios do império ao serviço de um dirigível de transporte que o leva às américas. Ao perder a paciência com um passageiro excepcionalmente cretino é obrigado a despedir-se, e arranja emprego como aeronauta com um misterioso capitão que acaba por se revelar um dos rebeldes que ameaça a segurança e estabilidade do império. A sua primeira reacção é de intenso patriotismo, mas falha ao tentar aprisionar os rebeldes. Estes revelam-se menos violentos do que esperavam, e levam Bastable ao covil do senhor da guerra, mostrando-lhe o outro lado da utopia imperialista: os povos colonizados, com direitos negados na sua própria terra, permanentemente subalternizados e explorados. Bastable vai-se transmutando de fiel servo de Sua Majestade num homem realista, capaz de perceber os vícios institucionais e com vontade de combater as injustiças que grassam no mundo. Algo que tem o seu quê de retrato da humanidade num século que começou imperial e colonialista mas terminou fragmentado em nacionalismos exacerbados.

A linguagem visual de Moorcock dá a este livro um carácter apaixonante. O périplo por este futuro retro de uns anos 70 do século XX diametralmente diferentes do que realmente foram é nos dado por uma linguagem clara que nos deixa a imaginar um estilismo que mistura o lustro art-deco com a ornamentação belle-époque e o visual tecnológico dos primórdios da era industrial. Em essência, a iconografia do que mais tarde iremos apelidar de estilo steampunk, mas neste livro um constructo ficcional que tenta criar um mundo alternativo com verosimilhança visual e se inspirar nos estilos que marcaram o início do século XX. A desejável imutabilidade imperial está patente na permanência de uma elegância mais à vontade no 1900 do que no 2000.

Talvez o momento em que este livro melhor revela a sua riqueza ficcional é o da empolgante batalha que opõe uma armada de dirigíveis imperiais aliados às forças tecnologicamente mais flexíveis do senhor da guerra, um momento excepcional num livro já de si de excepção. Este é o verdadeiro warlord of the air, um Robur asiático amante dos ideais de libertação.

Este é um daqueles livros que foi languescendo nas minhas pilhas, enquanto aguardava o momento certo para lhe dar a devida atenção. Se estiverem a fazer o mesmo que eu, parem já. O livro é demasiado bom para aguardar momentos certos de leitura, e garanto que a capacidade narrativa de Moorcock é tão boa que até a capacidade de atenção mais fragmentada fica sua cativa num livro que é de leitura compulsiva. Um merecido clássico da literatura de ficção científica, e um digno inspirador da estética steampunk.