quinta-feira, 22 de maio de 2014
Interzone #251
Ghost Story - um conto incómodo de John Grant. Boa parte dispersa-se em reflexões sobre as possibilidades do amor que parecem deslocadas no ambiente da Interzone. O que lhe dá o lado de pura ficção especulativa é a sua premissa de base. Uma antiga paixão telefona a um homem feliz no casamento a contar-lhe que está grávida dele, o que parece ser uma impossibilidade porque há décadas que o homem não a vê. Ficamos a pensar em fantasmagorias ou na clássica estrutura narrativa fantástica que é o conto do doppelgänger, em tudo similar ao personagem principal excepto na inversão moral dos seus actos. É por aí que o autor nos leva, até concluir de uma forma surpreendente. O encontro entre o homem e o seu antigo amor para discutir a improvável gravidez torna-se num momento em que as fronteiras probabilísticas do real se esbatem. O que poderia ter acontecido acaba por acontecer e o que aconteceu deixou de acontecer. Restam as memórias de uma vida que viveu mas que nunca existiu, e uma nova vida que é a de sempre. O final é uma interessante variante sobre o tema dos universos que se bifurcam a partir das decisões individuais.
Ashes - no conto de Karl Bunker a perda de um ente querido é a faísca para uma viagem a um futuro possível. O desenvolvimento da inteligência artificial trouxe maravilhas e catástrofes, e trouxe essencialmente fugacidade. Parece que ao simular e acelerar processos mentais as máquinas adquirem consciência mas depressa se esvaem, ou por transcenderem ou por desespero existencial ao descobrirem os limites do conhecimento. Num pormenor delicioso o autor não se decide por qualquer uma destas vertentes. No mundo futuro abundam os suspeitos do costume nas tecnologias de maravilha, mas também abundam projectos extraordinários inacabados porque os transhumanos que os construiram perderam o interesse e esvaíram-se. O que resta da humanidade, após guerras destrutivas potenciadas por novas armas nano e biotecnológicas, reside dispersa em comunidades isoladas que temem o mundo exterior. É esta visão de futuro, misto de utopia com apocalipse distópico, e a visão irónica sobre o acelerar da inteligência com meios tecnológicos, que torna interessante este conto. É uma visão crítica e refrescante sobre o pós-trans-humanismo singularitário.
Old Bones - curiosa vinheta de Greg Kurzawa que me fez recordar aquele conto de Ray Bradbury onde um homem perde os ossos com ajuda de um médico ocultista. Estamos numa cidade em ruínas, após um apocalipse passado, e um sobrevivente refugia-se de misteriosas criaturas de aura ameaçadora. Um cirurgião tenta auxiliá-lo, mas os seus métodos são muito pouco convencionais. Digamos que envolvem afogamentos e autópsias revivificantes. Um curioso momento de weird fiction para descansar o leitor das ficções especulativas.
Fly Away Home - Space opera ou fábula negra sobre o papel das mulheres em sociedades fundamentalistas? O conto de Suzanne Palmer trilha muito bem este caminho com uma história profundamente distópica sobre uma mulher, mineira num asteróide, serva de uma civilização fundamentalista religiosa que trata os homens como gado e as mulheres como procriadoras. Trabalham como escravos para se libertar de dívidas, são castigados pelos menores desvios à ética religiosa e são tutelados por plenipotenciários de poder absoluto. O acendo ao fundamentalismo islâmico é óbvio, mas a autora consegue manter alguma ambiguidade na definição exacta sobre que fundamentalismos estamos a falar.
A Doll is not a Dumpling - conto de Tracie Welser onde um robot que serve bolinhos chineses de massas aos transeuntes é reprogramado para assassinar um juiz que deu ordem de prisão a uma celebridade. Está um pouco para cá da fronteira do legível, não se percebendo a sua lógica interna.
This is How You Die - curtísima de Gareth Powell, a fazer bom uso da iconografia do desastre apocalíptico capaz de extinguir a espécie humana. Fica-se sem se perceber se este conto é um todo, é fragmento de algo maior ou apenas apontamento experimental.
Como habitual, a revista delicia-nos com o humor de David Langford e as interessantes colunas de novidades literárias, cinema e DVD. Jonathan McCalmont continua a assinar intrigantes ensaios críticos sobre FC, versando este mês sobre a ciclicidade de um género que se vai renovando periodicamente.