quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Daredevil: Born Again
Frank Miller, David Mazzuchelli (1990). Daredevil: Born Again. Nova Iorque: Marvel Comics.
Devo dizer que tive muita sorte na minha adolescência. Quando comecei a prestar atenção às revistas aos quadradinhos e a apaixonar-me pelo maravilhoso mundo dos comics uma das primeiras que me chegou às mãos, naquelas edições comprimidas da editora brasileira Abril, foi Elektra de Frank Miller. Ainda hoje recordo o deslumbre que sentia quando à noite, em viagens solitárias no metro, lia avidamente os argumentos sólidos ilustrados com um grafismo extraordinário. Isso e muito por acaso ter apanhado a reedição brasileira do arco american gothic de Alan Moore no Monstro do Pântano. Com referências destas é natural que tenha ficado para sempre agarrado à banda desenhada de estilo americano e aos autores que conseguiram pequenas obras primas levando ao limites as estreita condicionantes do género.
A Elektra seguiram-se inúmeros comics hoje felizmente esquecidos, Chris Claremont a viciar leitores nos X-Men, e as histórias do Demolidor assinadas por Frank Miller, que à época ressuscitou um personagem decaído com fortíssimas narrativas mais policiais do que super-heróicas. A queda e renascimento do herói é talvez o mais marcante arco narrativo que legou, um dos grandes e inesperados momentos da história dos comics. Anos depois, uma releitura da história de um Matt Murdock acossado e encostado a um canto pelo seu pior inimigo ainda surpreende pela complexidade e forma implacável como se desenrola. Nesta altura Frank Miller ainda não era o fascizóide rezingão obcecado com as manigâncias dos cabeças de turbante em que se tornou hoje e os seus argumentos policiais bem traçados ensaiavam as técnicas gráficas e narrativas cinemáticas que mais tarde tornariam Sin City tão atraente. Born Again é feito de justaposições brilhantes que entretecem uma teia narrativa de cinco histórias que se entrecruzam até à inevitável colisão final. Temos a vingança implacável do impiedoso rei do crime, o acossar de um Matt Murdock que perde tudo e é levado ao limite, um Foggy Nelson que de personagem cómico de apoio passa a amigo preocupado que prossegue a sua via e encontra alguma felicidade, a teimosia do repórter Ben Urich, único conhecedor do segredo do Demolidor que apesar de amedrontado pela violência do Rei do Crime persegue a história da conspiração que tramou Murdock, e uma Karen Page que após ter batido no fundo em busca de mais uma dose de heroína corre para Nova Iorque em busca de redenção por ter desencadeado a queda do Demolidor.
O argumento sólido de Miller ganha vida graças ao traço de David Mazzuchelli. Com um toque experimentalista que se torna aparente com o progredir da história, adapta na perfeição e leva mais longe as justaposições cinemáticas da estrutura narrativa. Inspirado na tradição artística europeia, oscila entre enquadramentos de perspectiva radicalizada ao estilo da arte sacra maneirista e toques de expressionismo germânico em momentos carregados de dramatismo. Nota-se um progressivo afastamento do realismo em direcção a estilizações que reflectem uma capacidade erudita de aplicar na prancha as influências da tradição pictórica, algo que mais tarde aplicará genialmente em Asterios Polyp.
A anos-luz da inocência bidimensional dos lugares comuns do género, Miller e Massuchelli brindaram os leitores com uma narrativa poderosa e surpreendentemente complexa, onde os personagens adquirem uma profundidade inesperada e a resolução da eterna luta do mal contra o bem termina de forma imprevisível.