segunda-feira, 15 de abril de 2013

Ficções

The Collapse of Western Civilization: A história como ciência sempre teve o seu quê de ficção científica se invertermos o sentido narrativo histórico, ou nos colocarmos na pele de um personagem de outra era. Não é por acaso que géneros como a história alternativa ou viagens no tempo são tão apelativos para a imaginação. Aqui temos algo ainda mais intrigante: um artigo científico sobre o declínio da civilização ocidental, escrito como se tivesse sido investigado décadas após a nossa era contemporânea. É uma anedota bem humorada publicada numa revista científica, mas é daquelas boas anedotas que nos deixa a sorrir e a pensar como só o melhor humor consegue. Sob o artifício narrativo de visão retrospectiva é-nos dada uma violenta visão crítica sobre o estado das coisas no mundo de hoje. O foco está nas ameaças climatéricas, onde os autores observam a profunda estupidez de ter dados e modelos teóricos que previam e comprovavam a disrupção antropocénica devida ao aquecimento global, mas nada se ter feito devido à pressão de grupos de interesse económicos ou políticos e a quedas no obscurantismo científico. Estes desvios, particularmente visíveis nos Estados Unidos de onde dia a dia sai um pronunciamento com ar gravoso que deixa qualquer pessoa de bom senso a arrepelar os cabelos (particularmente visível nas disputas sobre o ensino do criacionismo como teoria válida nas escolas, em simultâneo com a evolução das espécies), são genialmente glosados com uma pretensa lei de um estado da costa atlântica americana que proíbe a menção do termo "aquecimento global", estado esse que na data fictícia de escrita do artigo faria tranquilamente parte da plataforma continental submersa. Igualmente focada com uma implacável clareza está a teoria neo-liberal, na perspectiva dos autores a outra grande responsável pelo colapso civilizacional. Em suma, a visão cega centrada nos mercados, desinvestimento público e maximização de lucro individual impediu acções de defesa do tecido social. Incisivos, os autores fazem notar que quem mais se esforça pela acreditação das teorias neo-liberais é precisamente quem mais tem a ganhar com elas em oportunidades de negócio ou maximizar de lucros permitidos pela desregulação. O artigo lê-se com um sorriso, e um certo carinho pelo artifício de ficção científica, mas nesta visão de um passado vinda de um futuro plausível observa-se uma profunda crítica à cegueira contemporânea onde grupos de interesse deturpam abertamente o bom senso comum para permitir ganhos financeiros a curtíssimo prazo em detrimento de tudo: do clima, da economia, da sociedade. Como cidadão europeu, que assiste estupefacto à cretinice criminosa de líderes que insistem teimosamente em teorias austeritárias perfeitamente desligadas da realidade e que estão a reverter décadas de prosperidade e progresso,  a aniquilar a construção europeia e a demolir a economia de um continente, leio este artigo e não o vejo como uma crítica elegante, mas sim como um retrato fiel do mundo contemporâneo. Parabéns à climatóloga Naomi Oreskes e ao historiador de ciência Erik Conway pela criatividade, pertinência e acutilância.

Le Bouffant Terrible: Em jeito de epitáfio a Margaret Thatcher, a editora Livros de Areia disponibilizou gratuitamente a tradução portuguesa de um conto de Rhys Hughes, fábula onde a ascensão, domínio e queda de uma líder destrutiva é uma metáfora mal velada do percurso político e destruição social causada pela mãe ideológica do neoliberalismo selvagem e individualista.

A Game of Self Deceit: A revista Nature embarcou na moda de usar contos de ficção científica como observação de tendências potenciais de futuro. É uma boa moda, e espero que alastre e se torne infecção viral na imprensa tradicional e digital dedicada à ciência e tecnologia. Este conto não é particularmente interessante, excepto pela premissa: num futuro próximo, tecnologias de clonagem, virtualização, mind uploading e telecomunicações convergiram na capacidade de através de um chip embebido no cérebro, os seres humanos (não ficou claro se eram todos ou apenas os que o podiam pagar) terem cópias automáticas do seu cérebro que em caso de acidente fatal seriam imediatamente descarregadas para um clone. Ideia intrigante, misturando alguns conceitos que os singularitários tanto adoram.