domingo, 21 de outubro de 2012

No tinteiro

Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro. Uma estrofe de Gil Vicente que me ficou no ouvido ao assistir ao ensaio geral de Gil Vicente na Horta, uma interessante e mordaz revisitação da dramaturgia vicentina recriada a partir da colagem inteligente de excertos de algumas das suas peças. No Auto da Lusitânia, um diabo ordena a outro com esta estrofe, que assente as suas observações sobre as injustiças e incoerências dos comportamentos humanos. Pertinente, mas o que me deixou a frase a revoar na mente foi outra ideia.

Não foi difícil imaginar Gil Vicente a olhar para a pena e o tinteiro para magicar esta metáfora. Num registo mais moderno poderia ter saído qualquer coisa como não poupes a esferográfica, percute bem nas teclas da máquina ou regista os terabytes de dados. Ou não poupes a lousa, que não te fique na cera, que os ouvidos não esqueçam. Mas Vicente era quinhentista, e a sua metáfora de modernidade era o tinteiro. Como a nossa é o digital ou as tabuinhas de cera o eram na época romana.

A tecnologia da nossa era contemporânea condiciona as metáforas que utilizamos para descrever o mundo que nos rodeia. O iluminismo trouxe a ideia do mundo enquanto intricado mecanismo de relógio, dos deuses enquanto relojoeiros. A revolução industrial levou-nos a descrever a realidade em termos mecanicistas, a ver o homem enquanto máquina biológica. Na era da informação, olhamos para o real através da lente digital. Descrevemos o cérebro como um dispositivo de computação (um dos modelos de descrição da memória, o estrutural, define o pensamento como o resultado de processos de input, output e armazenamento). Influenciados pela génese dos espaços virtuais, começamos a conceber o mundo como uma possível representação virtual, simulação criada num outro universo que estará sempre para lá do nosso alcance. As nossas cidades, sociedades, empresas, observações sobre a biologia são descritos como sistemas, entidades complexas interdependentes em teias de relações. Teias. Ora aí está a metáfora que a internet nos trouxe para descrever o mundo.

Gil Vicente descreveu a necessidade de registar e não esquecer socorrendo-se do tinteiro, a tecnologia de escrita da sua época. Hoje diríamos grava. Aliás, dizemos.