quarta-feira, 27 de junho de 2012

O Princípio da Sabedoria


A Cinemateca está a organizar um ciclo de homenagem ao cineasta António de Macedo que trará de volta ao público boa parte da sua obra cinematográfica. É uma iniciativa que peca por ser tardia e isolada, mas típica do contexto cultural português onde a memória oficial parece estar destinada apenas a alguns que estão conforme o padrão considerado aceitável enquanto aqueles cujas obras não se adequam à norma cultural são habitualmente esquecidos ou citados como meras curiosidades para nota de rodapé nas historiografias culturais.

Confesso que não sabia o que esperar deste cineasta. Sabia o pouco que todos sabem, que é uma espécie de maldito cujas tendências para o ocultismo, fantástico e ficção científica lhe retiraram a credibilidade num meio cultural elitista. Parece que traiu as raízes no cinema novo dos anos 60/70 e fez uns filmes esquisitos, crime de lesa-majestade no panorama umbiguista do mainstream. 


O Princípio da Sabedoria inicia-se com uma sessão espírita, longa e assombrosa cena que puxou os limites dos efeitos especiais disponíveis em Portugal na época em que foi realizado. A imagem sobreposta de um espírito quadricéfalo invocado por uma mulher de sabedoria numa aldeia algarvia que toca as presentes dando-lhes a ver o que mais desejam parece prenunciar um clássico filme de fantasmagorias e assombrações. Quando esta mulher se cruza com um arquitecto que vive fechado numa casa senhorial tudo muda, e o queixo do espectador começa a cair.

Note-se o Arquitecto, senhor todo-poderoso de laivos sadianos que se fecha no seu domínio, servido por servos fieis. É uma clara referência ao ocultismo, à ideia do grande arquitecto criador do mundo, mas este arquitecto está queimado e dedica-se apenas aos prazeres sensuais adequados à sua fina e muito própria sensibilidade. Aqui o filme começa a revelar-se obra de elevado surrealismo, com personagens desviantes que se movem em cenários claramente inspirados na pintura surrealista (e Jim Steranko também me veio à mente). Um mordomo encurvado resplandecente no seu uniforme azul de berloques dourados que procura o relógio perfeito, uma sensual governanta cujas relações com o seu amo nunca são clarificadas, um sátiro criado servidor extraordinário de vinhos degustados em copos de formas imprevisíveis, um músico agrilhoado ao seu piano forçado a criar continuamente obras nunca ouvidas, encerrados numa casa luxuosa onde o barroco e o surreal convivem como num sonho opiáceo. É esse o panteão que rodeia o solene arquitecto junto do qual a mulher de bruxarias contrasta pela normalidade.

A descoberta de uma mão decepada dá o mote a uma série de estranhos acontecimentos. Cioso da sua tranquilidade, o arquitecto manda colocar ao seu portão um cartaz ambíguo anunciado que algo foi encontrado no seu jardim que será entregue a quem o provar ter perdido. O resultado é inesperado. O jardim mostra-se um ponto focal da realidade, onde todos perderam e voltam a encontra algo que lhes é importante, desde parafuso de grafonolas à fé budista... e violoncelos, filhas surdo-mudas, bombas anarquistas, tesouros inúteis... o arquitecto solipsista acaba forçado a conviver com a realidade que o rodeia. Apetece-me compará-lo a uma divindade ausente forçada a conviver com as suas criações pela força das solicitações.

Neste filme circular, o desejo humano revela-se o arquitecto da sua nulificação. O desfilar de personagens icongruentes recorda-nos a enorme diversidade da vida, essa rica marcha de saberes individuais.

O que se inicia como conto fantasmagórico transforma-se em obra iniciática onde a filosofia do oculto, teísmos e a circularidade do desejo humano nos são apresentados com uma dose fortíssima de humor e surrealismo. Acrescente-se a isso um impecável sentido estético, com enquadramentos perfeitos onde o olhar mais treinado nota a aplicação das regras de composição pictórica da arte clássica e um sentido de cor vibrante que só é traído pela qualidade da película e temos um filme memorável, sendo lamentável que esteja quase esquecido.

Ver este filme na sala onde já vi ou revi obras como Citizen Kane, M.A.S.H., Simple Men ou Satyricon obrigou-me a olhar para este filme de Macedo como uma obra que noutro país seria marcante, influente pela sua estética e conteúdo. Troquemos Sinde Filipe por Mastroianni, Guida Maria por Anna Magnani, Carmen Dolores por Claudia Cardinale, a aldeia algarvia por uma aldeia da emilia-romagna e teríamos vastas elegias a este filme de um Fellini português. Mas num meio onde as preocupações estéticas se centram nas vicissitudes da vida ou lirismo soporífero uma obra pedrada no charco como esta parece envergonhar e destina-se à curiosidade de rodapé e semi-obscuridade. Talvez esta iniciativa da Cinemateca dê frutos e dê a Macedo a projecção que merece no panorama cultural nacional. Esta primeira sessão contou com a presença do cineasta, que nos deliciou com algumas curiosidades técnicas que mereciam um registo para a posteridade.

Não gosto de usar tons imperativos no que escrevo. Imposições são para mim repelentes e fujo do estilo de  discurso-pregação do que considero ser útil, virtuoso ou importante. Mas neste caso abro excepção: urge conhecer e divulgar a obra deste autor. Não o fazer é condenar a sua visão, estética e temáticas únicas a um desmerecido esquecimento.

(Adoraria ilustrar este post com fotogramas do filme ou um clip, para mostrar até que ponto é impressionante a sua qualidade visual. Lamentavelmente nada se encontra. É que nem um dvd...)