quarta-feira, 14 de março de 2012

Promessas falhadas

Ultimamente dei por mim a reflectir sobre o falhanço da tecnologia. Falhanço, perguntam? Como falar de falhanço quando vivemos numa era em que todos os dias somos surpreendidos por novas maravilhas do mundo tecnológico, dispomos de ferramentas avançadas que cabem nos bolsos, os recessos mais obscuros da cultura humana são digitalizáveis, uma nova e vibrante economia transforma a sociedade, e um novo meio de comunicação digital concretizou a promessa afirmada por Marshall McLuhan (Castells, 2004) da aldeia global e interliga milhões de indivíduos num mundo onde as fronteiras virtuais esbatem as físicas?

Reflicto nisto por recordar uma conversa que tive com um professor universitário, meu mentor em projectos tecnológicos, que se confessou totalmente desapontado com o rumo do progresso tecnológico ao longo dos últimos quarenta anos. Ele, tecno-utopista confesso, apontou-me que se vivemos hoje num admirável mundo novo digital, a promessa libertária da tecnologia falhou completamente. O uso desta para transcender limites pessoais e sociais, capacitando os indivíduos para desenvolver os seus interesses e participar na construção comum de novos espaços culturais coalesceu numa rigidez mecanicista, onde o homem se encontra ao serviço do automatismo digital. Alguns transcendem estes limites. São os responsáveis por muitos dos produtos que hoje definem a cultura global, do google e aplicações web à explosão de cultura bleeding edge expressa nos ambientes globais de partilha propiciados pela internet. Parecem uma multidão, mas são uma gota de água na humanidade. Muito influentes, são os proponentes e dinamizadores de uma nova era histórica geradora de um novo conceito económico (Tapscott & Williams, 2007) baseado na criatividade individual alicerçada em conhecimento e vontade de ir mais além. Mas são uma élite, e se as suas criações alteram a vida de todos, nem todos participam nesta revolução pós-industrial.

Observamos que os brilhantes sistemas digitais depressa foram adaptados ao automatismo mecanicista. Para uma larga fatia dos utilizadores, um computador pouco mais é do que uma máquina de escrever glorificada. Os processos de trabalho foram agilizados pela programação e bases de dados, mas a quem os utiliza pouco mais é exigido que clique em botões pré-programados. As pessoas tornaram-se descartáveis. A tendência é a de restringir e bloquear. Algumas das pequenas maravilhas técnicas que utilizamos com tanto gosto fazem questão de se mostrar gaiolas douradas, desencorajando e proibindo os seus utilizadores de explorarem para lá do que é definido como aceitável pelos seus fabricantes e até de sequer abrir os equipamentos, para ficar a saber o que está no seu interior (Doctorow, 2011). A interconectividade global está rapidamente a degenerar num panopticon em que os movimentos de todos são resgistados em inúmeras bases de dados cada vez mais interligadas, em que o conceito de privacidade se esbate não através da partilha voluntária de dados online mas da ominpresente vigilância de câmaras e geolocalizações em tempo real (Doctorow, 2012). A internet, espaço de partilha por excelência, foi cooptada por modelos de negócio que oferecem plataformas de partilha de informação a troco de transformarem os seus utilizadores em dados para optimização massiva de receitas publicitárias. O potencial dos consumidores-criadores, prosumers (Toffler & Toffler, 2006), esbate-se na cada vez mais relevante afirmação que se o produto é gratuito, o cliente é o produto.

E neste admirável mundo novo, misto de soma digital de Huxley e distopia orwelliana, onde podemos encontrar a educação? Talvez demasiado distante de sequer compreender o alcance destas questões. Presa a um modelo de sistema educativo pensado para a era industrial (Toffler & Toffler, 2006), produtora de peças humanas da maquinaria das fábricas que se vão desmantelando face à evolução tecnológica numa época em que um detentor de uma impressora 3D com um computador e programas de CAD pode criar e montar os seus próprios produtos físicos (Rothstein, 2012). Com vontade de se abrir e responder aos desafios da contemporaneidade, mas presa aos mitos e pré-conceitos que a definem. Oscilando entre o conservadorismo alastrante institucional e as experiências inovadoras de alguns profissionais no terreno. Como sistema, utiliza as ferramentas digitais de formas que esmagam o seu potencial. Os currículos do ensino básico estimulam a pesquisa e produção de documentos, ignorando todo o manancial de possibilidades da utilização criativa do computador. Os investimentos em equipamentos não se traduziram em alterações paradigmáticas, sendo novas formas de utilizar as metodologias clássicas (Warlick, 2009). A principal diferença pedagógica entre um quadro de giz e um quadro interactivo está no consumo de electricidade. Ambos se baseiam em metodologias demonstrativas. O computador possibilita pedagogias de base construtivista, assentes em colaboração, criação, construção orientada de conhecimento e experimentalismo criativo (Papert, 1997, Jonassen, 1996, Resnick, 1996), mas acaba por ser utilizado como suporte audio-visual e de elaboração documental - também vertentes indispensáveis, mas não as únicas.

Observamos que este estado de coisas se deve a um conjunto alargado de factores: falta de autonomia dos docentes face a um sistema monolítico que sob pressão das mudanças sociais se entrincheira num formalismo que assegura segurança, falta de formação abrangente que mostre aos intervenientes diferentes pontos de vista, estímulo à repetição de padrões de uso bem conhecidos, conservadorismo de um sistema em que a mentalidade dominante se afirma aberta à inovação mas é de facto avessa por sentir que a inovação ameaça alterar radicalmente os pressupostos de base (Warlick, 2009).

Num mundo em fase de transição e mudança acelerada, preparamos os nosso alunos para o futuro repetindo modelos obsoletos de um passado que não regressará. Reforçamos a padronização e a memorização mesmo sabendo que as competências já hoje exigidas aos indivíduos passam antes pela flexibilidade e criatividade alicerçada no conhecimento (Toffler & Toffler, 2006). Exaltamos o conformismo enquanto admiramos aqueles que, como observa Godin (2012), atingiram o seu sucesso individual por rejeitar os pressupostos sobre os quais assentam o ensino.
As novas gerações crescem rodeadas de tecnologia, utilizando meios diversificados consumidos muitas vezes em paralelo (Cardoso, Espanha, & Lapa, 2007). Os telemóveis, os computadores, a internet, são utilizados pelos jovens como forma lúdica, ferramenta de aprendizagem e forma de modelarem o mundo que os rodeia, afirmando as suas escolhas culturais e potenciando os seus laços sociais (Brown, 2000). Considero que a educação não pode ficar alheia as estas mudanças. Trabalha com uma geração de alunos cada vez mais habituada à tecnologia, cujas formas de organização e comunicação se afastam cada vez mais dos ritmos e tempos do espaço escolar e deve preparar cidadãos capazes de enfrentar e responder aos desafios do futuro, capazes de se integrarem e agirem numa sociedade cada vez mais global e flexível. Face a estes desafios, a escola enquanto instituição necessita de se adaptar, modificando modelos tradicionais para dar resposta às necessidades das novas gerações. Se não o fizer, corre o risco de se tornar uma instituição paradoxal essencial para o desenvolvimento do indivíduo e sociedade, mas ineficaz no desempenho deste papel.

Apesar dos handicaps, o sistema de ensino responde a algo a que as mais contemporâneas tendências ainda não conseguem - chegar a todos. Mas está na altura de aproveitar a útil e necessária massificação para poder levar a todos a possibilidade de um desenvolvimento pessoal mais completo, onde conhecimento, criatividade e dinamismo se sobreponham à memorização e sucesso em desempenhos padronizados. Temos condições económicas e tecnológicas para finalmente realizar a promessa da escola de formar o indivíduo enquanto pessoa. E com uma massa crítica de pessoas dinâmicas e criativas, os horizontes de futuro das sociedades poderão alargar-se.

Referências:
Brown, J. (2000) Growing Up Digital http://www.johnseelybrown.com/Growing_up_digital.pdf
Cardoso, Gustavo; Espanha, Rita; Lapa, Tiago (2007) E-Generation: Os Usos de Media pelas Crianças e Jovens em Portugal. CIES/ISCTE. http://cies.iscte.pt/destaques/documents/E-Generation.pdf
Castells, M. (2004). A Galáxia Internet: Reflexões sobre Internet, Negócios e Sociedade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Doctorow, C. (2011) The Coming War On General Computation https://github.com/jwise/28c3-doctorow/blob/master/transcript.md
Doctorow, C. (2012) Censorship is inseparable from surveillance http://www.guardian.co.uk/technology/2012/mar/02/censorship-inseperable-from-surveillance
Godin, S. (2012) Stop Stealing Dreams http://www.squidoo.com/stop-stealing-dreams
Jonassen, D. (1996). Computadores Ferramentas Cognitivas: Desenvolver o pensamento crítico nas escolas. Porto: Porto Editora
Rothstein, A. (2012). The Shape of Shaping Things to Come. http://rhizome.org/editorial/2012/mar/8/shape-shaping-things-come/
Papert, S. (1997). A Família em Rede. Lisboa: Relógio D'Água
Resnick, M. (1996). Distributed Constructionism. http://llk.media.mit.edu/papers/Distrib-Construc.html
Tapscott, Don; Williams, A (2007). Wikinomics. Lisboa: QuidNovi
Toffler, Alvin; Toffler, Heidi (2006). A Revolução da Riqueza. Lisboa: Actual Editora
Warlick, D. (2009). The Learning Factory http://www.smartpeoplemagazine.com/2009/05/the-learning-factory/