segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Towing Jehovah



James Morrow (1994). Towing Jehovah. Londres: Arrow Books.

Google Books | Towing Jehovah.

É surpreendente o poder das redes sociais. Não estou apenas a falar daquela rede social, mas de outras redes dedicadas a interesses específicos. É o caso da Goodreads, dedicada a bibliófilos, graças à qual descobri este intrigante, divertido e interessante livro através das opções de leitura do escritor português David Soares. As maravilhas da Amazon puseram-me este livro na caixa do correio.

Towing Jehovah leva ao absurdo o conceito nietzschiano da morte de deus. Se o filósofo, e a comunidade de ateus (na qual orgulhosamente me incluo) proclamou a morte metafórica do que não passa de uma metáfora elaborada para fazer sentido das forças caóticas da natureza, Morrow concretizou-a. Neste livro, deus é um cadáver gargantuesco que está à deriva algures no oceano Atlântico. Os anjos, a morrer de uma doença deliciosamente intitulada como empatia terminal, reúnem as suas résteas de força para construir uma enorme tumba num glaciar no Àrtico e incumbem Anthony Van Horne, capitão caído em desgraça depois do superpetroleiro que capitaneava ter colidido com traficantes de droga e provocado um desastre ecológico, e Thomas Ockham, padre jesuíta e físico teórico, da monumental tarefa de rebocar o corpo de deus até ao local de descanso final.

Se esta premissa já toca as raias do absurdo, o que vem a seguir ainda estica mais esta fronteira. A igreja católica, temendo o fim da sua carreira, procura um esquema de criopreservação dependente da taxa de degradação dos neurónios divinos para uma posterior ressuscitação artificial de deus. O navio comandado por Horne recolhe uma náufraga femininista que chocada perante a falicidade patriarcal do corpo masculino da divindade conspira com o seu eterno namorado, um herdeiro rico, pintor falhado e presidente de uma obscura sociedade iluminista para destruir o cadáver divino num ataque militar. Incapazes de assegurar os serviços do mercado negro (estavam disponíveis esquadrilhas de caças avançados, submarinos e até bombas nucleares, mas só para governos), alistam um bizarro grupo de entusiastas da II Guerra, que dedicam a vida a recriar encenações realistas das grandes batalhas e vivem como se os anos 40 fossem eternos, convencidos a alinhar no projecto deicida com o subterfúgio de destruir um golem japonês numa recriação da batalha de Midway, completa com um porta aviões e esquadrilhas de bombardeiros navais.

Nada corre como planeado, e tudo vai descarrilando ao longo do livro. O plano de transportar o corpo de deus até aos gelos àrticos é atrasado pelo encalhar do navio rebocador numa ilha desconhecida, atractor atlântico dos lixos ocidentais (descrito numa linguagem ballardiana de paisagens de carros enferrujados e bidões de resíduos tóxicos, onde parte da tripulação mergulha num paroxismo de orgias pagãs reagindo à ideia de que sem deus não há medo de pecar, e a sobrevivência de todos depende da deofagia - o degustar literal do corpo de deus, aparentemente com um sabor a fast food. O notório apodrecimento do corpo divino leva o Vaticano a mudar de planos, optando por embalsamar o corpo despachando um petroleiro armado aparentemente cheio de líquido embalsamador.

A colisão das linhas narrativas dá-se no Ártico, onde Van Horne, decidido contra todos a entregar o corpo na tumba para ele construída, é atacado pelos caças-bombardeiros dos fanáticos da II Guerra e salvo, a contragosto, pelos mísseis do segundo petroleiro.

E o que acontece ao corpo de deus? A vontade férrea de Van Horne, num processo de auto-redenção interior, prevalece e o corpo é depositado na tumba gelada cavada pelos anjos. Resta a resposta ao porquê da morte de deus, brilhantemente intuída pela navalha de Ockham do padre jesuíta, que compreende que deus se suicidou para permitir às suas criações amadurecer.

Leitura divertida, por vezes hilariante (as passagens envolvendo os fãs irredutíveis dos anos 40 lêem-se como comédia pura), Towing Jehovah tem por detrás uma forte reflexão sobre a religião e ateísmo, sobre a necessidade de imperativos morais, quer externos quer internos, e sobre a necessidade de espiritualidade presente no ser humano.