quarta-feira, 3 de março de 2010

Espaços virtuais, espaços pictóricos, espaços ficcionais



Baldassare Peruzzi, Sala delle Prospettive (1515-1517), Vila Farnesina.

A ideia de mundos virtuais, espaços de realidade imaginária para lá do real táctil, não é um conceito novo surgido com o mundo digital. Nas artes literárias e pictóricas existe uma longa tradição de criação de mundos imaginários ou recriação de locais reais, visitáveis com o folhear do livro ou contemplação da obra pictórica. Grau (2003) observa uma tradição essencialmente europeia de representações visuais imersivas: pintura mural romana de representação de espaços sagrados cujos vestígios podemos observar nas salas da Villa dei Misteri em Pompeia; os faux terrain barrocos, panoramas religiosos que misturam pintura e escultura; espaços perspécticos renascentistas e trompe l’oeil barroco, estilismos de representação que utilizando a ilusão da perspectiva na representação mesclam espaços imaginários com o espaço arquitectónico físico. Podemos talvez ir mais atrás na tradição clássica, a lendas coligidas por Plínio o Velho da tradição greco-romana sobre os pintores gregos Apeles e Zeuxis cuja busca de um realismo perfeito os teria levado a criar ilusões capazes de enganar o olhar mais perspicaz (Gombrich, 2008).

Um exemplo incipiente de espaço virtual, hoje quase esquecido, encontra-se nos panoramas do século XVIII e XIX: imensas pinturas meticulosamente alinhadas em salas circulares. Nestes espaços imersivos óptica, arquitectura e aplicação de efeitos de pintura paisagística e perspectiva combinavam-se para criar um efeito realista, para a época, de estar num local sem estar realmente lá, como observa Grau, citando Alexander Von Humboldt “the new 360º image medium with its huge dimensions could ‘‘almost substitute for travelling through different climes” (2003, p: 69). Sensações mediáticas na época, estes panoramas eram visitados por multidões, constituindo um investimento lucrativo que envolvia equipes de pintores e arquitectos que recorriam às mais recentes invenções tecnológicas da época (projecção óptica e fotografia) como auxílio à representação pictórica fiel de espaços e episódios históricos. Embora esta tecnologia tenha caído na obsolescência, o seu princípio de imersão foi mantido vivo pela cenografia futurista das exposições mundiais e pelo cinema, meio em que cedo começaram as experiências com imersividade tridimensional (Grau, 2003).

É na ficção científica, especificamente no género Cyberpunk, que encontramos a génese da corrente conceptualização dos espaços virtuais. Na era da linha de comando e interface de texto, estes escritores descreveram visões imaginativas que influenciaram criadores de espaços virtuais. A descrição do ciberespaço desenvolvida por William Gibson em Neuromancer, publicado originalmente em 1984, é considerada como a mais influente, mas os espaços virtuais mundos virtuais assemelham-se mais aos descritos pelo escritor Neal Stephenson na obra Snow Crash , publicada originalmente em 1992. Os criadores dos mundos virtuais Second Life (Au, 2008) e Blue Mars (Childers, 2010) apontam a obra deste autor como inspiração directa dos seus espaços.
William Gibson imaginou o ciberespaço como uma visualização abstracta visitável através de interfaces neuronais: "Cyberspace. A consensual hallucination experienced daily by billions of legitimate operators, in every nation, by children being taught mathematical concepts . . . A graphic representation of data abstracted from the banks of every computer in the human system. Unthinkable complexity. Lines of light ranged in the non space of the mind, clusters and constellations of data. Like city lights, receding...." (p:34). Esta visão de um espaço de representação abstracta de dados acessível por utilizadores que fundem a sua consciência na matriz digital firmou-se no imaginário contemporâneo.

Já Stephenson imagina duas realidades que se mesclam: um real hiper-futurista, fracturado entre conglomerados económicos que se substituíram aos estados-nação, e o virtual, vibrante, que apelida de Metaverso. Este espelha o urbanismo real, sendo uma cidade organizada ao longo de um eixo central com duzentos e cinquenta e seis pontos principais (uma referência ao código binário), alguns sem utilizadores, outros fortes pontos de atracção para os utilizadores. “So Hiro’s not actually here at all. He’s in a computer-generated universe that his computer is drawing onto his goggles and pumping into his earphones. In the lingo, this imaginary place is known as the Metaverse. Hiro spends a lot of time in the Metaverse. It beats the shit out of the U-Stor-It. Hiro is approaching the Street. It is the Broadway, the Champs Elysees of the Metaverse. It is the brilliantly lit boulevard that can be seen, miniaturized and backward, reflected in the lenses of his goggles. It does not really exist. But right now, millions of people are walking up and down it”. Na descrição do autor, a sensação de imersão é total, num interface tridimensional acessível através da rede por óculos que projectam imagens na retina e auscultadores. Os mais bem sucedidos habitantes do mundo virtual mostram as suas capacidades através de avatares exóticos e construções elaboradas, enquanto uma massa desprezada de novatos acede através de terminais públicos que os restringe a avatares elementares a preto e branco. Alguns utilizadores escolhem viver permanentemente no espaço virtual. Stephenson descreve-os como gárgulas, graças às protuberâncias dos equipamentos que os mantém na ilusão consensual digital.

A visão urbanística de locais virtuais, com pontos nevrálgicos onde se concentram obras arquitectónicas digitais e utilizadores, é uma metáfora comum a estes espaços. Um exemplo pode ser observado nas ilhas do Second Life, nos seus vários graus de complexidade criada pelos utilizadores a partir dos terrenos virtuais fornecidos pela empresa detentora dos servidores que alojam o mundo. Este princípio também é aplicado por outros mundos virtuais: Open Sim, Croquet, There, Blue Mars, entre outros.

Outra visão que influenciou o desenho de mundos digitais pode ser encontrada no romance True Names, escrito por Vernor Vinge em 1981. Num futuro próximo, a navegação em espaços virtuais é possível através de poderosas metáforas mentais que visualizam dados abstractos. A metáfora mais comum é de mundos de fantasia, onde utilizadores experientes se representam como feiticeiros e as suas acções como feitiços capazes de modificar o sistema: “sprites, reincarnation, spells, and castles were the natural tools here, more natural than the atomistic twentieth-century notions of data structures, programs, files, and communications protocols. It was, they argued, just more convenient for the mind to use the global ideas of magic as the tokens to manipulate this new environment.” (1981, p: 20) Os espaços de dados interconectados são representados como uma vasta paisagem, com a sua importância, capacidade e localização física interligados ao tamanho e localização das suas representações – por exemplo, um satélite datacenter em órbita é representado como uma longínqua colina na paisagem virtual: “As such, it was a nice out-of-the-way meeting place, and in the Other Plane it was represented as a five-meter-wide ledge near the top of a mountain that rose from the forests and swamps that stood for the lower satellite layer and the ground-based nets. In the distance were two similar peaks, clear in pale sky. “ (1981, p: 31). A visão não está muito longínqua da de William Gibson, embora este represente o ciberespaço como uma paisagem abstracta. A ligação iconográfica entre o digital e o fantástico é concretizada nos diferentes mundos virtuais de jogo multi-utilizador dedicados a estas temáticas, dos quais World of Warcraft é o mais bem sucedido (Bartle, Castronova).

O potencial da telepresença prometido pela realidade virtual e mundos virtuais é sublinhado no romance The Light of Other Days, publicado no ano 2000 por Arthur C. Clarke e Stephen Baxter, onde o desenvolvimento de tecnologia de wormholes acoplada a sistemas de realidade virtual permite a transmissão de informação e luz através do espaço tempo, sendo utilizados como uma janela virtual que permite telepresença através de distâncias estelares e temporais: “He picked up a handful of rocks, let them fall; their slow low-G bounce wasn’t quite authentic. "This is real. I must have read a hundred fictional dramas, a thousand speculative studies, about missions to Proxima. And now here we are. It is the dream of a million years to stand here and see this. It’s probably a dream rich enough finally to kill off spaceflight. Pity. But that’s all this is: a dream. We’re still in that chilly hangar on the outskirts of Seattle. By showing us the destination, without requiring of us the enervating journey, the WormCam will turn us into a planet of couch potatoes." (2009, p:84). As distâncias físicas e temporais ficam ao alcance da percepção sem necessidade de deslocação física. Esta preocupação ecoa as palavras de Humboldt acima citadas: estar lá sem realmente estar, experimentar sem realmente tocar, percepcionar uma elaborada ilusão como algo real. A telepresença e trabalho de colaboração são concretizações recentes nos mundos virtuais cada vez mais utilizados como local de trabalho, e no caso do projecto Wonderland, criado especificamente para esse fim.

Olivier Grau (2003). Virtual Art: From Illusion to Immersion. Cambridge: MIT Press.
Ernest Gombrich (2008). The Story Of Art. Londres: Phaidon
Arthur C. Clarke, Stephen Baxter (2009). The Light Of Other Days. Nova Yorque: Tor Books
Neal Stephenson (2000). Snow Crash. Nova Yorque: Bantam Spectra
Vernor Vinge (1981). True Names. Nova Yorque: Bluejay Books http://web.archive.org/web/20051127010734/http://home.comcast.net/~kngjon/truename/truename.html
William Gibson (2004). Neuromancer. Nova Yorque: Ace Books
Plínio o Velho, História Natural http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.02.0137:book%3D35:chapter%3D36