domingo, 16 de agosto de 2009

A Família em Rede



Seymour Papert (1997). A Família em Rede. Lisboa: Relógio D'Água.
Seymour Papert

As frases mais memoráveis deste livro surgem quando Papert se interroga sobre o que pensaria um cirurgião do século XIX caso entrasse numa sala de operações do século XX. Seria capaz de pegar num escalpe e operar um paciente? E um professor do século XIX? Colocado numa sala de aula do século XX, seria capaz de dar aulas e ensinar alunos? A resposta, deprimente, a estas questões sublinha bem o atraso conceptual que a educação tem face a outras àreas de conhecimento. Um atraso que é paradoxal para uma àrea do conhecimento que se dedica precisamente a transmitir conhecimento para as gerações futuras.

Todos sentimos e procuramos a importância do ensino, mas os conhecimentos que mais prezamos são muitas vezes adquiridos de forma autodidacta. Falo por mim, mas certamente que muitos sentem o mesmo. Numa era em que os media veiculam torrentes de conhecimento em diversos formatos, o papel do professor enquanto transmissor de conhecimentos poderá estar a caminhar para a obsolescência, a menos que se centre no estruturar de conhecimentos e abrir horizontes de desenvolvimento pessoal. Hoje, mais do que aprender factos elementares, é mais importante ensinar a questionar e procurar conhecimento.

Centramos na educação a esperança na evolução exponencial do conhecimento quando na verdade a forma como ensinamos não evoluiu fundamentalmente em séculos, apesar das cada vez mais fortes contribuições das neurociências ou da psicologia. Numa era mediatizada, em que a tecnologia é parte integrante e indispensável da vida, a sala de aula resiste como uma espécie de último reduto dos bucólicos tempos pré-digitais. O que é novamente paradoxal, porque entre os professores encontramos inúmeros excelentes exemplos de integração de tecnologias digitais e uma cultura aberta à tecnologia, que depois pouco se reflectem no ensino enquanto sistema. Iniciativas como o plano tecnológico pouco podem fazer para alterar este quadro a curto prazo, porque se centram apenas nos equipamentos e não nos conceitos. Um caso típico é o dos quadros interactivos, tecnologia muito na moda entre professores, que replica digitalmente a mais clássica (e antiga) estratégia de ensino - demonstração no quadro e aplicação repetitiva de conhecimentos. Estratégias como o trabalho colaborativo assistido tecnologicamente ou a aprendizagem baseada em problemas dificilmente passam da fase de pesquisa e produção de texto impresso.

Qualquer professor que se preze sabe que o acto de ensinar envolve sempre diversas estratégias. Sem querer entrar em excessos de eduquês, é tão necessário assumir momentos de demonstração e memorização como ser capaz de dar uns passos atrás e deixar que os alunos se desenvecilhem para resolver um problema. E também não é fácil mudar, num sistema de ensino rígido em tempos e espaços como o nosso que está mais centrado na produção de resultados medíveis mas pouco significativos no mundo real. Afinal, quantos de nós nunca marraram afincadamente para um exame, tiraram uma nota excelente e significativa em termos estatísticos, e dias depois mal se recordavam do que haviam memorizado? Mas estou a divergir.

Seymour Papert é bem conhecido entre aqueles que procuram uma colisão benéfica entre pedagogia e tecnologia. Professor do MIT, é um dos criadores da linguagem de programação Logo, desenhada para ensinar crianças de níveis pré-alfabetizados a programar (cuja iteração mais recente é o Scratch), e autor de inúmeras obras em que procura formas de integrar tecnologia com educação reconhecendo que tal como a disseminação de tecnologias obrigou a mudanças de paradigma sociais e culturais, terá que forçosamente mudar o paradigma educacional. A Família em Rede é uma reposta possível, um conjunto de reflexões sobre o papel da tecnologia na educação e um mapa de estratégias de utilização. Aqui, os suportes tecnológicos parecem hoje seriamente desactualizados - cd-roms, internet a 56kbps, mas os princípios de trabalho - exploração criativa, pesquisa pensada como resposta a problemas, integração utilizando uma vasta gama de diversificadas actividades simples e complexas, são hoje muito actuais.

Estas questões não são de reposta fácil. Fazer entrar os computadores na escola é um passo, e muito será ainda discutido, experimentado, resmungado e aplicado até que a escola se transforme em direcção a uma instituição que responda realmente aos desafios que se coloquem à sociedade.

Papert procura com este livro desmistificar o computador, mostrando como é fácil desmontar preconceitos quando somos expostos criativamente à máquina. Explorar o potencial do computador numa perspectiva de bricolage (conceito que Papert vai buscar a Sherry Turkle) ajuda-nos a dominar a máquina para o que queremos, desmistificando a noção que o computador nos domina e reduz a processos pré-programados. É também uma forma de democratizar o acesso à tecnologia, colocando nas mãos de todos ferramentas que têm a capacidade de nos fazer ultrapassar o papel de meros consumidores de conteúdos, libertando o potencial criador dos elementos que compõem as grandes massas. Aqui, o livro é quase presciente da explosão da web colaborativa que vivemos neste momento.

A Família em Rede é uma leitura essencial para quem quiser introduzir a tecnologia na escola indo para lá da faceta da aquisição de equipamentos, mergulhando nas mudanças conceptuais que a tecnologia digital irá obrigar a escola enquanto conceito e instituição a efectuar.