domingo, 5 de abril de 2009
La Ricotta
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La Ricotta
Uma curta metragem interessante para ver nos dias finais da quaresma cristã. As filmagens de um filme sobre a paixão de cristo são ensombradas pela morte de um dos actores, um mendigo esfomeado que aceita o papel de ladrão na crucificação para poder comer.
Este filme é uma profunda meditação sobre valores, necessariamente cristãos mas essencialmente humanistas. Pasolini explora uma dualidade entre a representação icónica da paixão e o olhar de piedade que nos desperta compaixão. As cenas da paixão, clinicamente filmadas com uma visão profundamente influenciada pela estética barroca recriando Rosso Fiorentino, são nulificadas no seu sentido pelas atitudes dos actores que brincam e tiram macacos do nariz enquanto a banda sonora nos faz ouvir rumbas e os gritos do assistente de realizador para mudar a música para algo mais apropriado à cena. A mensagem e o media estão dissociados. A piedade e seriedade expressada pela representação, procurada por quem visiona, não está presente no espírito de quem representa.
Piedade é o que nos desperta a personagem de Strachi, pobre mendigo esfomeado que vive num buraco perto do local de filmagens. Strachi insinua-se nas filmagens para obter comida para saciar o seu estômago vazio. A pura necessidade primária leva o personagem a fazer tudo para comer, a suportar tudo, particularmente o nítido desprezo dos participantes do filme, que o elegem como um . Eventualmente ganha lugar como extra, participando como um dos ladrões na crucificação. Numa cena particularmente chocante, Stracchi é amarrado à cruz, e suplica por comida, que lhe é dada e retirada por um assistente de produção num acto óbvio de sadismo.
No final do filme, o local de filmagens é visitado pela nata da sociedade, que vem ver o trabalho do mestre cinematográfico representado sobriamente por Orson Welles. O realizador grita acção, várias vezes, mas nada acontece. Um dos actores, o mendigo Stracchi, morreu na cruz. É nesta linha de narração que se centra a discussão dos valores da paixão cristã e da compaixão perante o próximo. Ao filmar o suplício do mendigo, Pasolini parece querer mostrar que nada mudou após dois mil anos de cristandade, mesmo perante o ideal social representado nos ícones cerimoniais. Dois mil anos após a primeira paixão, após o suplício de quem morreu por nós, continuamos a agir com indiferença perante a miséria dos menos afortunados.
Este tipo de visões não costuma ser vista com bons olhos por hierarquias e pessoas de bem. Pasolini foi processado e condenado a uns dias de prisão por desrespeito aos valores religiosos. Afinal, que veleidade é essa de apregoar uma mensagem que os valores, religiosos ou não, devem ser expressos por acções e não por prostação oca perante ícones? La Ricotta pode ser visto em duas partes no Dailymotion: La Ricotta 1 e La Ricotta 2.