sábado, 7 de fevereiro de 2009

Things To Come



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H.G. Wells, tal como Júlio Verne, é um dos pais do género literário que se inspira nas visões da ciência para produzir literatura. Enquanto Verne se inspirava nas conquistas da ciência para produzir romances de aventura, Wells tentou ir mais longe. A visão subjacente à sua obra envolve a política, o humanismo e perspectivas críticas da sociedade. Aplicando a crença positivista no progresso científico e tecnológico como resposta ao primitivismo humano, Wells critica fortemente na sua obra as condições sociais vigentes, propondo uma alternativa de cariz socialista e racionalista, elevando o espírito humano para lá das inconsistências e injustiças, numa proposta de civilização global utópica, racional e progressista. Não é preciso ir muito longe para perceber este espírito da obra de Wells. Basta ler The Time Machine, a mais conhecida das suas obras, para compreender a visão subjacente à dicotomia entre os infantis e delicados Eloi e os rudes, semi-humanos e violentos Morlocks, que serviam e se alimntavam dos Eloi.

Produzido nos anos 30 por Alexander Korda, Things to Come adapta ao cinema um dos livros menos conhecidos de Wells. Things to Come é uma visão do futuro, uma projecção, escrita nos primeiros anos do século XX, de como seria o futuro de uma humanidade que procurava o progresso técnico esquecendo o progresso civilizacional.

Things to Come coloca-nos em Everytown, uma muito londrina cidade inglesa. Nos anos 40, a sociedade tipicamente britânica da nação vê a sua tranquilidade e prosperidade ameaçada pelo envolvimento numa guerra contra um inimigo inominado. Mediada pela tecnologia, é uma guerra violenta em que novas armas causam morte e destruição sem precentes. O tanque (belos tanques com desenho de inspiração art deco) é o senhor dos campos de batalha, enquanto enormes frotas se digladiam nos oceanos. Mas é a guerra no ar que se mostra a mais mortifera, trazendo o horror e a destruição às cidades que estão longe da frente de batalha (note-se que o livro foi escrito depois da I Guerra Mundial). Os biplanos de Everytown (que os connoisseurs depressa reconhecem como aeronaves Hawker Fury) enfrentam as aeronaves mais avançadas do inimigo (curiosamente similares aos Dewoitine D.520). As aeronaves trazem consigo uma nova e terrível arma, capaz de espalhar a morte e a destruição: as bombas de gás. A guerra, uma guerra global em que os combatentes já não se recordam porque razão combatem, só termina nos anos 60, com o colapso dos estados-nação e a desagregação social subjancente.

Aqui, Wells foi muito presciente. De facto, nos anos 40, a Inglaterra e o mundo estão envolvidos numa guerra mundial, onde as armas da nova tecnologia assumem o papel primordial. E, de facto, durante esta guerra surge uma nova arma: a bomba atómica, de características destrutivas impensáveis, cuja radioactividade tem efeitos similares aos da pestilência causada pelos gases que Wells propõe. O que leva, mais uma vez, a Jung e ao seu conceito de inconsciente colectivo. Por vezes, há ideias que andam no ar, a exigir serem descobertas.

Segue-se um período de anarquia, pautado por uma assassina epidemia mortífera. O novo poder está nas mãos de quem é capaz de resolver a doença - não o médico, incapaz de aliviar o sofrimento sem qualquer medicamento, mas o senhor da guerra, que abate a tiro qualquer um que esteja infectado pela doença. Everytown, reduzida a escombros e ao primitivismo, depressa resvala para uma ditadura fascizante, violenta e militarista, cujo líder é decalcado do italiano Mussolini (até ao pormenor do capacete com penas).

Mas dos céus, a esperança. Surgido de uma aeronave futurista, um novo homem chega ao reino semi-selvagem do ditador de Everytown. Este é um emissário de uma comunidade de cientistas que, no auge do conflito, decidem criar um novo modelo de sociedade. A partir da sua base em Bassorá (o berço mesopotâmico da civilização europeia volta aqui a ser o berço de uma nova civilização utópica), reconstroem e desenvolvem a técnica e a ciência, e espalham-se pelo mundo, anexando as míriades de pequenos potentados militaristas que surgiram após o colapso dos estados-nação numa missão civilizadora. O regresso da civilização não se faz de forma pacífica. O tiranete de Everytown não acata com agrado o fim do seu poder.



Arrasada, destruída e esquecida, a velha sociedade desvanece-se. Sob influência da comunidade científica, surge uma nova sociedade baseada no racionalismo, no progresso e na justiça. Ao invés de reconstruir as velhas cidades, os novos homens recomeçam de novo. Mergulhando nas entranhas da terra, constroem modernas cidades em vastas cavernas. Sob liderança benévola dos cientistas (uma espécie de ditadura iluminada), o mundo mergulha numa nova era de prosperidade e desenvolvimento. Aqui, o filme de Korda torna-se uma pérola da ficção científica, com cenários esplendorosos a substanciar a visão futurista de Wells. Pensem em Syd Mead misturado com Le Corbusier e percebem a visão das cidades e tecnologias deste futuro utópico. Utopia, embora de raiz totalitária. Wells não resistiu à tentação de colocar uma minoria esclarecida a tomar conta dos destinos dos magotes humanos, incapazes de compreender os princípios fundamentais de uma sociedade bem organizada.

Em 2036, a sociedade encontra-se numa nova encruzilhada. Os cidadãos de Everytown, tranquilos, prósperos e complacentes, veêm com preocupação os esforços de exploração espacial desenvolvidos pelos cientistas. Instigados pelas duras palavras de um escultor, que o benévolo presidente do conselho científico decide não reprimir num sinal de superioridade moral, os cidadãos de Everytown invadem o centro de pesquisas. Nesse preciso momento, prepara-se o lançamento de uma cápsula que irá orbitar a lua. Enquanto a populaça invade o cento de pesquisa, um enorme canhão electrico propulsiona um casal de astronautas rumo à lua. Claramente, Wells nunca prestou muita atenção a Tsiokolvsky.

Como filme, Things to Come deixa muito a desejar. Sendo mais um veículo de ideias do que uma história, agarra-nos pela suas visões de futuro, cenários utópicos e conceitos sociais. Os personagens são unidmensionais, não abrindo espaço a uma empatia com o espectador que é a marca dos filmes que mais gostamos. Apesar destas falhas, e de algumas inconsistências - Wells esteve profundamente envolvido no filme mas a versão final foi editada por Korda, Things to Come é um dos clássicos esquecidos da ficção científica.