quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Das Trincheiras com Saudade



Isabel Pestana Marques (2008). Das Trincheiras com Saudade. Lisboa: A Esfera Dos Livros

A participação portuguesa na Iª Guerra Mundial resume-se a alguns parágrafos nos livros de história portugueses e, nos publicados no estrangeiro, a umas poucas linhas. No contexto da enorme hecatombe da guerra de trincheiras, a participação de soldados portugueses é recordada pela mitificada batalha de La Lys, que arrasou o CEP, e que na historiografia militar mundial mal é recordada como um dos momentos da batalha de Armentières, um dos últimos esforços do exército alemão para forçar ingleses e franceses a uma capitulação antes da chegada das tropas americanas.

Das Trincheiras com Saudade é um estudo profundo que analisa minuciosamente aquilo que outros resumem com um parágrafo ou menos. Cruzando dados oficiais, registos históricos, comunicações militares e as memórias dos sobreviventes do Corpo Expedicionário Português, esta obra traça um retrato hisórico, militar e particularmente social do que foi a vida dos soldados portugueses nas trincheiras.

Concebida como uma afirmação internacional da jovem república portuguesa, a participação militar na frente ocidental sofreu dos problemas de ambição desmedida face à realidade do país de que ainda hoje sofremos. A oposição inglesa ao envio de soldados portugueses só terminou, com reservas, após a decisão portuguesa de apresar navios germânicos abrigados em portos nacionais - uma preciosa ajuda à marinha britânica, acossada pelos submarinos alemães. A mobilização portuguesa socorreu-se de homens do interior profundo, arrancados às terras e pastos. O treino militar, em Tancos, preparou estes homens para as necessidades básicas de um exército, mas esqueceu as coisas mais elementares, como os cuidados de higiene. As falhas da indústria nacional levaram a problemas de suprimento de armamento, munições e até uniformes e vestuário interior. Exemplo disso é o uso das pelicas - casacos e calças de pele de ovelha, adaptados à pressa para fazer face aos invernos da flandres, e que valeram aos soldados o epíteto de mé-més, tanto por ingleses como por alemães. Não foi uma peça de uniforme popular entre os soldados.

Após o trasporte, em navios britânicos, para as costas francesas, processo complexo que levantou enormes problemas logísticos e de saúde pública, as tropas portuguesas foram sujeitas a novo treino, uma vez que o treino original era considerado pelos ingleses como demasiado deficitário para enfrentar os desafios da guerra moderna. Ao fim de um longo processo, foram colocados num sector de onze quilómetros de frente.

É ao retratar a vida quotidiana dos soldados que este livro brilha. O panorama traçado - dos medos, das dificuldades, dos anseios, das saudades, da sexualidade, do terror da frente de batalha e do tremendo choque cultural de homens do interior profundo a tomar contacto com a modernidade da guerra e a cultura francesa, permite perceber o que viveram os soldados do CEP.

A batalha de La Lys é analisada com profundidade e isenção, desconstruindo os mitos da valentia lusa face à esmagadora superioridade alemã e desfazendo a marca de uma derrota face à impossibilidade de vitória. O retrato é um de coragem e confusão, de homens desmoralizados por longas permanências sem rendição nas trincheiras, mal armados, que cederam inevitavelmente face a forças muito superiores, mas que apesar de tudo atrasaram significativamente o avanço das tropas germânicas. Outros mitos são desmontados - a falta de apoio dos sectores ingleses das trincheiras aconteceu, de facto, mas não por desdém uma vez que estes também estavam sobre enorme pressão das forças germânicas.

A visão que temos do CEP envolve a coragem dos homens e a inépcia das autoridades portuguesas. Sem desmentir esta visão, Das Trincheiras com Saudade traça um panorama completo da participação portuguesa na frente ocidental, mostrando como o mais curto dos parágrados da história, se analisado com minúcia, revela histórias de vida e factos intrigantes.