terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Black Dossier



Alan Moore, Kevin O'Neill (2007). The League Of Extraordinary Gentleman: Black Dossier. La Jolla: Wildstorm

Wikipedia | Black Dossier
Planet | Extraordinary Gentleman
Jeff Nevins | Annotations to the Black Dossier

É sempre um prazer ler os vários volumes da Liga dos Cavalheiros Extraordinários, criada por Alan Moore e ilustrada por Kevin O'Neill. Não só pelo esperado brilhantismo de Moore, um deus no universo dos comics, mas principalmente pelo jogo estimulante que é tentar descobrir todas as referências mais ou menos obscuras que Moore entreteceu na teia dos seus argumentos. A Liga dos Cavalheiros Extraordinários revive antigos personagens da ficção do século XVIII e XIX. Identificar as criações, compreender as referências obscuras e os pormenores gráficos é um jogo altamente aprazível, particularmente para os conhecedores das literaturas fantásticas dos séculos passados.

No primeiro volume, a liga composta por Mina Harker (Dracula, de Bram Stoker), Capitão Nemo (20.000 Léguas Submarinas e A Ilha Misteriosa de Júlio Verne), Allan Quatermain (As Minas de Salomão, por H. Ridder Haggard), Homem Invisível (The Invisible Man de H.G. Wells) e Dr. Jekyll/Mr Hyde (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson) enfrentam o perigo amarelo de Fu Manchu (de Sax Rohmer) com uma ajudinha de Auguste Dupin (The Murders in the Rue Morgue, de Edgar Allan Poe) e do Dr. Cavor (First Men on the Moon de H. G. Wells). O segundo volume assiste à destruição da liga durante a invasão marciana, derrotada graças às misteriosas criaturas bacteriológicas criadas pelo Dr. Moreau (War of the Worlds e The Island of Dr. Moreau de H. G. Wells).

The League Of Extraordinary Gentleman: Black Dossier é um passo à frente relativamente aos primeiros volumes, quer no desenvolvimento dos personagens e na cronologia ficcionada, quer na manipulação do comic enquanto medium de comunicação. Passada nos anos 50 do século XX, Black Dossier narra aquela que será a última aventura dos rejuvenescidos Mina Harker e Allan Quatermain, procurando um dossier secreto que contém a história das ligas de cavalheiros extraordinários. Na Grã-bretanha dos anos 50, a recuperar do final de um período totalitário de cariz socialista tutelada pela figura do Grande Irmão (1984, de George Orwell) instalado nos escombros da vitória aliada sobre a II Guerra provocada por Hynkel (leram bem, é uma referência ao filme The Great Dictator de Charlie Chaplin) onde Dan Dare encabeça um esforço de regresso ao espaço, os dois heróis clássicos procuram subtrair o dosssier das mãos dos escalões ocultos e corruptos dos serviços secretos. No seu caminho têm de enfrentar um jovem James Bond (de Ian Fleming), o veterano Bulldog Drummond (personagen dos romances policiais dos anos 30 escritos por Sapper, pseudónimo de Cyril McNeile) e Emma Night (futura Mrs. Peel da série televisiva dos anos 60)

Pela quantidade de referências já se perceber que Moore vai mais longe na remixagem de personages clássicos da literatura. Enquanto a história decorre temos acesso ao conteúdo do famoso dossier negro, e aí Moore solta-se por completo, ultrapassando todos os limites da erudição cultural. Os anteriores personagens das ligas passadas são revisitados numa profunda lição de literatura clássica que vai de Shakespeare a H.P Lovecraft, sem esquecer Jonathan Swift ou Cervantes. A imortal personagem andrógina de Virginia Woolf, Orlando, ganha dimensões históricas. Alan Moore repesca Fanny Hill, mesclando-a com Venus e Tannhauser, mistura P.G. Wodehouse e H. P. Lovecraft num cruzamento entre Bertie Wooster, Jeeves e uma liga composta por Mina Harker, Quatermain, Orlando e Thomas Carnacki (Carnacki the Ghost Finder de William Hope Hogdson) combatendo criaturas lovecraftianas do além-espaço. Tira o chapeu a Jack Kerouac recriando aventuras dos personagens na america da Golden Age dos comics recontadas pelo escritor beat Sal Paradyse (On The Road de Kerouac). Recorda personagens das literaturas não anglo-saxónicas ao dar um cheirinho de contrapartes da Liga franceses (Les Hommes Misterieux, recuperando Robur o Conquistador, Le Nyctalope, Fantomas, Arséne Lupin e Monsieur Zenith) e alemães (os Zwielicht-helden envolvendo uma andróide e o seu inventos Rotwang, e encabeçados por Dr. Mabuse e Dr. Caligari). O newspeak orwelliano não é esquecido.

A lista de referências é quase interminável. A que deixo aqui é longa, mas é um pálido reflexo do mar de referências utilizadas e citadas por Alan Moore. The League Of Extraordinary Gentleman: Black Dossier é banda desenhada no seu melhor, um prazer estético e intelectual que abre novos limites à graphic novel enquanto medium.