quinta-feira, 14 de agosto de 2008

As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay



Michael Chabon (2000). As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay. Lisboa: Gradiva

Apenas os fãs mais renhidos de banda desenhada se deliciam com as histórias por detrás da chamada era dourada dos comics. Esta época, vagamente centrada entre os anos 40 e 50, viu nascer os principais personagens da banda desenhada de super-heróis, bem como vastas galerias de personagens hoje quase completamente esquecidas, excepto pelos amantes das velhas revistas poeirentas, e terminou debaixo do desinteresse do público pelo género, conjugado com as pressões de uma opinião pública que considerava os comics como perniciosas influências no espírito das crianças, que culminou na adopção de um código de auto-censura, que ainda hoje rege a indústria dos comics.

O super-herói como género foi revivido nos anos 60, repescando muitas das personagens clássicas dos anos 40. As aventuras e desventuras dos heróis clássicos ficaram para a história, particularmente a criatividade louca dos argumentistas e desenhadores, e a rapacidade dos editores. É nesta época dourada que Michael Chabon mergulha para ir buscar os cenários e principal enredo destas espantosas aventuras.

Kavalier e Clay são uma dupla quase inseparável, dois primos que se conhecem pelo tenebroso acaso da guerra e do holocausto. Josef Kavalier é um refugiado, conhecedor das artes dos ilusionismo e da prestidigitação, aprendidas numa Praga que a ocupação Nazi o obriga a abandonar, numa aventura em que ajuda a retirar o mítico Golem do seu esconderijo para o colocar a salvo das garras germânicas. Chegado à américa, o principal desejo de Kavalier é o de ajudar a sua família a fugir do jugo nazi, desejo esse que apesar de todos os seus esforços nunca chega a concretizar.

Samuel Clay, Klayman de origem, era um enfezado jovem que encontrava nos mundos imaginários uma fuga para a sua fraqueza física. Homosexual não assumido, Clay torna-se um brilhante argumentista dos nascentes comics. Juntos, Kavalier e Clay dão origem a um dos mais geniais personagens dos comics: o Escapista, mestre do ilusionismo, combatente dos ignóbeis sequazes do sanguinário III Reich.

A vida prega as mais variadas partidas a estes dois amigos, cuja maior aventura é a busca do sucesso no competitivo mundo da banda desenhada. Sempre longe da respeitabilidade, estes dois artistas levam o comic a níveis de complexidade que ultrapassam a visão do comic como entretenimento barato. Sob argumentos de Clay, Kavalier leva a cabo uma luta solitária contra o nazismo nas páginas a três cores das bandas desenhadas. O seu arrojo e criatividade assegura o sucesso da sua editora, uma empresa originalmente dedicada ao ramo das quinquilharias. É um sucesso que vem com um pesado preço: os direitos de autor das suas personagens pertencem aos seus editores. Os dotes de ilusionismo de Kavalier granjeiam-lhe um lugar na sociedade, como entertainer de números de escapismo. Nas febris noites da era dourada, Kavalier e Clay convivem com a élite artística nova iorquina, na época veneradora do surrealismo.

A principal obsessão de Kavalier é trazer a sua família para os estados unidos. Consegue que o seu irmão saia de Praga e venha num transporte de crianças refugiadas, sonho que termina quando o navio que os transporta é torpedeado por um submarino alemão. Aí começa a saga das desventuras da dupla. Clay, com medo das repercussões, rejeita a sua paixão homosexual pelo actor que dá vida ao seu personagem nas radionovelas. Kavalier, transtornado pela morte do irmão e pelo fim do seu desejo de resgatar a família, alista-se nas forças armadas americanas, disposto a combater o nazismo, abandonado o seu fiel Clay e Rosa Saks, a namorada, e, sem o saber, abandonado o seu filho. Kavalier é colocado na antártida, onde acaba por matar o único alemão sobrevivente num esquelético posto na mítica neue schwabenland (um dos muitos acenos que Chabon faz à cultura popular e à cultura dos comics). No final da guerra, Kavalier oculta-se no Empire State Building, e apenas a aproximação fortuita com o seu filho numa loja de ilusionismo o faz regressar, de forma catastrófica, à antiga vida.

As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay é um romance complexo, apaixonado pela história da era dourada dos comics. Se a parceria que dá nome ao livro é fictícia, bem como as suas personagens, revistas e editoras, reflectem as histórias por vezes mirabolantes das verdadeiras editoras, das personagens e dos seus criadores. O Escapista obriga-nos a ver os comics como aquilo que realmente são: uma forma de escapismo, que espelha os medos, desejos e obsessões dos seus criadores e leitores. A luta atormentada de Kavalier reflecte os traumas da época, ao mesmo tempo de criação sem limites e de destruição avassaladora. O dilema de Clay, numa era em que a homosexualidade era estigmatizada, resolve-se nas páginas dos seus comics, em particular nas personagens heróicas acompanhadas de leais companheiros mais frágeis, que espelham a relação do seu criador com os homens, alguém que se vê como fraco acompanhado o homem perfeito. As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay são um mergulho apaixonado na história da era dourada da banda desenhada.