sexta-feira, 4 de janeiro de 2008
A Vida no Ecrã
Sherry Turkle (1997), A Vida no Ecrã. Lisboa: Relógio D'Àgua
Sherry Turkle
WIRED | Who Am We
Esta obra seminal sobre a essência da vida digital é mais conhecida pelo seu profundo estudo das transformações que a noção de identidade e de sentido de ser está a sofre graças à emergência dos mundos virtuais, que permitem aos seus utilizadores mudarem de pele com alguns toques no teclado. O anonimato possibilitado pela comunicação à distância mediada pelos ecrãs convida a experimentar, convida os utilizadores a explorarem facetas da sua personalidade que não explorariam no mar de relações humanas da vida real.
São transformações a que normalmente não prestamos atenção. Sabemos, e não atribuímos importância, que nos chats e na vida online as pessoas não agem da mesma forma que agiriam na vida real. Os tímidos proferem, através do teclado, palavras cheias de coragem. A mulher com que estamos a falar (falar, utilizando o teclado e não a voz) pode ser, do lado de lá do ecrã, um homem, ou uma mulher que na vida online se transmuta num homem que se transmuta numa mulher (um exemplo desses é referido por Turkle). O mundo virtual é, antes de mais, um mundo que dá corpo, que exterioriza a imaginação humana. As variações de comportamento, o experimentar de diferentes personalidades, anulando tabus e preconceitos, são um exemplo da importância da virtualidade para a alma humana. A questão que Turkle coloca está no saber se estes actos são superfíciais, brincadeiras sem consequências, ou se se traduzem em novas formas de construir o indivíduo.
Sendo fortemente influenciada pelos pós-modernistas, Turkle constroi uma elaborada e bem comprovada teoria de transição de uma noção de eu unitário, individido, para uma noção de eu multiforme e multifacetada. A internet surge como o grande catalizador que permite a emergência da individualidade descentrada.
Na vida no ecrã, todos temos personalidades múltiplas. Longe de ser uma doença mental, essa multiplicidade revela uma nova visão multidimensional da realidade, propiciada pelas ferramentas tecnológicas.
Se A Vida no Ecrã se deixasse ficar por estes campos de estudo psicológico, já seria uma obra fascinante. Mas este estudo vai muito para além da ideia de indivíduo, embora esta o norteie. A Vida no Ecrã traça igualmente uma ambiciosa história das formas de pensar, de conceptualizar o computador, desde o impacto que a descoberta desta máquina tem na forma de pensar dos seus utilizadores, o surgir da cultura de simulação, o fascínio das crianças pelas máquinas, até aos paradigmas de utilização e aos sempre fascinantes campos de estudo no domínio da Inteligência Artificial.
Professora no MIT, Sherry Turkle está no melhor local para analisar a emergência da vida virtual. A influência de personagens como Marvin Minsky e Seymour Papert nesta obra é notória- são, no fim de contas, colegas de trabalho, garantindo o acesso imediato de Turkle a novas ideias e tecnologias.
Turkle conclui com fascinantes observações sobre a emergência de novas consciências de Ser, de novas formas de pensar a personalidade, que fazem evoluir a tradicional consciência unitária até agora dominante para uma indivualidade múltipla, assente em extensões tecnológicas do ser.
Escrito em 1995, A Vida no Ecrã consegue algo raro para uma obra que se debruça sobre a tecnologia digital, cujo rápido avanço deixa muitas obras que a estudam desactualizadas pouco tempo depois de serem publicadas. A Vida no Ecrã escapa a este axioma. Se bem que as tecnologias descritas já são, nalguns casos, arcaicas o sentido das transformações não se modificou, e as consciências potenciadas pela tecnologia que Turkle descreve são tão actuais nos metaversos como nos velhos MUDs... ou o conferir de espírito animado pelas crianças a artefactos tecnológicos, que os entendem como quase criaturas, esbatendo a fornteira entre o vivo e o não vivo, é talvez ainda mais autêntico hoje, na era dos brinquedos robóticos que simulam vida, do que na época em que os mais avançados simuladores de vida se resumiam ao jogo da vida de Conway.
A Vida no Ecrã é uma obra capaz de mudar a nossa maneira de pensar a tecnologia e a identidade.