Confesso que sou habitualmente apolítico e distraído em questões legalistas; um defeito, é certo, na cidadania contemporânea, mas prefiro exercer a minha cidadania de outras formas. Estou, como muitos, desiludido pelo baixo nível e hipocrisia dos políticos nacionais, pela mesquinhez, pura ignorância e nepotismo das faixas mais visíveis da classe política. Embora tenha uma esperança que entre as bases ou entre os elementos da classe ainda se encontrem cidadãos conscientes e dignos.
De qualquer forma, a vergonhosa realidade por vezes atinge-me de forma violenta. É o que se passa com o demolir da classe docente e com o desmontar sistemático do ensino público levado a cabo por este governo de confessas tendências neoliberais assumidas.
Escrevo estas linhas no furioso rescaldo da leitura que fiz ao decreto-regulamentar 2/2008, que regulamenta a avaliação dos docentes para efeitos de progressão na carreira. Eu não era daqueles que concordavam com o sistema anteriormente vigente. O progresso era uma formalidade automática, equalizava tudo pelo mínimo denominador comum. Baseava-se em relatórios de autoavaliação, sempre discutíveis, e na frequência de acções de formação que serviam únicamente para obter créditos para progressão na carreira e não como reais momentos de formação e valorização profissional e científica. Os profissionais mais esforçados não eram recompensados pelos seus esforços, e os menos dignos não eram normalmente sancionados pela sua falta de profissionalismo. De forma que recebi bem os novos projectos de avaliação de docentes, que prometiam valorizar o mérito e o esforço para lá do contratualmente estabelecido. Pelo menos até começarem a transpirar os verdadeiros moldes pelos quais essa avaliação seria efectuada. Aí, as dúvidas sobre os reais motivos, ocultos sob a capa de argumentos válidos, começaram. E agora, perante o fait-acompli, perante o decreto, esvaíram-se quaisquer dúvidas.
A valorizção do mérito, o prémio do esforço, o estabelecimento de metas de profissionalismo não passam de uma capa que mal cobre as reais intenções de impedir o progresso na carreira, contendo os gastos com mão de obra profissional.
Escrever sobre as muitas enormidades deste regime é coisa para muitos posts, e coisa já muito discutida. Aliás, os sindicatos, desacreditados e impotentes, já muito o têm feito. Mas sempre que leio o decreto, há coisas que me saltam à vista, óbvias injustiças e perigososos precedentes.
Um é no estabecimento de objectivos profissionais, que refere que o docente deverá estabelecer objectivos no cumprimento de, entre outros, apoio a aprendizagem de alunos, participação nas estruturas educativas e participação e dinamização de projectos, valorizando-se o desempenho para lá do horário do docente. Nobre princípio, que valoriza o empenho de todos os docentes que ficam nas escolas para lá do seu horário ocupados com tarefas pedagógicas, administrativas ou de apoio aos sistemas da escola? Nem por isso... é que falamos de uma avaliação regular, que determina a progressão normal na carreira e sanções caso o cumprimento dos parâmetros esteja abaixo do nível estabelecido. Na prática, temos uma entidade patronal a criar mecanismos de avaliação que podem levar a que só progrida na sua carreira o profissional que preste serviço para lá do seu horário contratualmente estabelecido. O sector privado, com o patronato português, por norma tão àvaro ao pagamento de salários justos, vai adorar este precedente criado pela tutela.
Outro perfeito paradoxo prende-se no estabelecimento de metas para melhoria dos resultados escolares dos alunos. Outra ideia nobre, sem dúvida. Qual é o professor que não deseja melhorar as prestações dos seus alunos? O problema coloca-se pela lógica falaciosa de constante melhoria. O que é que acontece quando já se parte de uma base de bons resultados? No meu caso específico, a taxa de sucesso para a disciplina que lecciono no contexto escolar ultrapassa os 90%. O estabelecimento de metas deverá sempre tentar ultrapassar essa fasquia, o que cria uma situação paradoxal. Como melhorar o que está bom, sabendo que se pode ser penalizado pelo não cumprimento da meta estabelecida?
Esta questão das metas tem outra argola. Imagine-se dois profissionais, ambos da mesma disciplina, com turmas semelhantes. Um é rigoroso e criterioso, outro corresponde na perfeição à imagem de baldas que a opinião pública tem da classe docente. O primeiro, aplicando com rigor os critérios de avaliação, esforçando-se pelo valor das aprendizagens, irá dar as notas ajustadas ao esforço e ao mérito dos seus alunos. O segundo avalia de forma a garantir que os seus alunos tenham boas notas, inflacionando assim a média das avaliações. No papel, segundo o critério contabilístico, na estatística final, qual destes dois docentes é o mais valorizável? E não poderá o primeiro, perante a nítida injustiça, recorrer aos tribunais para fazer valer os seus direitos? Não me surpreenderá se dentro de muito em breve os tribunais começarem a receber inúmeros processos e pedidos de providências cautelares levantados por professores com legítimos descontentamentos sobre a forma e os critérios como foram avaliados.
Podemos argumentar que para que estas situações estejam precavidas existe um outro mecanismo de avaliação - a comparação dos resultados da avaliação interna dos alunos (a levada a cabo pelo docente) com os resultados da avaliação externa, levada a cabo através de exames. A medida é lógica, trata-se de comprovar as formas de avaliação e as metodologias de trabalho de forma independente, mas o resultado será altamente pernicioso. Perante a ameaça de disparidades entre a avaliação interna e externa, os professores poderão fazer incidir as suas aulas na preparação para a avaliação (e idiota é aquele que não o fizer). O objectivo do sistema de ensino passará de ser o desenvolvimento dos alunos, ficando-se pela mera preparação para fazer boa figura em exames nacionais. Isto já acontece com as provas de aferição e exames nacionais de nono ano.
No meu caso específico, isso poderá implicar um retrocesso no meu trabalho. Em vez de optar por actividades práticas e expressivas, que valorizam o uso de tecnologias, até daquelas normalmente não associadas à sala de aula (como, por exemplo, o 3D), e a aplicação criativa das mais variadas ferramentas, das digitais às tradicionais, terei de pensar de forma diferente. Sabendo que no final do processo de ensino os meus alunos serão avaliados não pelas competências que lhes transmiti mas sim pelo seu resultado numa prova estandardizada que mede conhecimentos teóricos, e que eu serei avaliado por esses resultados, penso que me verei obrigado a optar pelo formalismo, pela teoria. Espero francamente que neste ponto esteja a ser alarmista: detestaria, em nome de metas estatísticas, ter de abandonar os meus princípios pedagógicos - desenvolver a criatividade, expandir o horizonte de conhecimentos dos alunos através das mais variadas ferramentas, com especial incidência nas novas tecnologias, forma de preparar os alunos para actuarem na sociedade do conhecimento de forma que ultrapasse a de consumidores/espectadores, e criar experiências de aprendizagens significativas para as crianças (é normal, se me permitirem a hubris, alunos novos contarem-me que os seus irmãos, antigos alunos meus, lhes mostram com orgulho trabalhos desenvolvidos comigo em anos anteriores).
E nem sequer comento o sistema de quotas de atribuição de níveis, ou as barreiras intransponíveis à atribuição de excelente.
Estarei a ser alarmista, será este novo modelo de avaliação assim tão terrível? A verdade é que é impossível não ficar alarmado com esta lei tão catch 22. Em particular, como professor que apostou na mudança, contra a estagnação, sinto-me traído e desmoralizado pela malevolência com que a tutela se apropriou de nobres ideiais para justificar o aniquilar de uma classe. Sinto-me tramado, com f maiúsculo.