quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Retrocessos

Eis-nos chegados ao século XXI, onde a humanidade vive uma era de prosperidade ímpar na história da humanidade. As desigualdades, fracturantes e angustiantes, ainda existem, mas a caminhada para a diminuição do fosso entre populações depende de um esforço que está a ser feito, apesar de não tão rápido como desejaríamos.

Nas sociedades mais desenvolvidas, as populações vivem com níveis de conforto inimagináveis há menos de meio século. A tecnologia transformou a nossa forma de viver. A educação universal transformou radicalmente as paisagens culturais - em vez de uma refinada cultura de elites em contraponto ao analfabetismo das brutas massas, temos um acesso igualitário às bases culturais que definem a essência da nossa civilização. E, no entanto...

Dizia-se que neste século XXI, o aliar de uma educação universal, que dissemina a bases da cultura científica pelas populações, com a tecnologia e os desenvolvimentos sociais retirariam finalmente a importância à ideia de religião. Útil em tempos antanhos como forma de controlo social e explicação obscurantista dos fenómentos naturais, a religião perderia a sua importância numa era capaz de transmitir a herança do iluminismo à escala global.

No entanto, parece que está a acontecer o preciso oposto. Cada vez mais a religião parece ganhar maior importância, particularmente no que diz respeito às suas interpretações mais literais. No debater dos impactos da modernidade sobre a humanidade, é habitual ver a importância dada às palavras daqueles que veículam sabedorias vindas directamente dos tempso mais obscuros da história da humanidade - veja-se, por exemplo, a importância dada aos líderes religiosos quando se fala de genética, o que equivale a levar em conta a opinião de um agricultor da idade média sobre a manufactura industrial com base em robots. E, particularmente após o 11 de setembro, a ideia de religião, aliada à ainda mais perigosa ideia de choque, ou guerra, entre civilizações, tornou-se incontornável nos media e no mundo das ideias.

Assistimos ao emergir de fundamentalismos, até nas sociedades mais avançadas. As seitas religiosas alastram, bem como a crença em "saberes" milenares tradicionais espelhada no gosto pelas astrologias ou "medicinas" alternativas.

Numa época que colhe os benefícios da ciência, porquê toda esta importância dada ao obscurantismo religios? Numa época em que o acesso à ciência está simplificado, porquê este aparente triunfo das crendices obscurantistas?

Uma possível resposta pode estar na essência das palavras que a seguir cito, um pouco fora do seu contexto original, da obra de Sherry Turkle intitulada A Vida no Ecrã.

"Na ausência dum princípio de coerência, o eu dispersa-se em todas as direcções. A multiplicidade não é viável se se implicar a alternância entre personalidades que não conseguem comunicar umas com as outras. A multiplicidade não é aceitável se implicar uma confusão mental que conduza à imobilidade. Como poderemos ser a um tempo múltiplos e coerentes? Em The Protean Self, Robert Jay Lifton tenta resolver esta aparente contradição. Ele começa por considerar que uma visão unitária do eu correspondia a uma cultura tradicional, com símbolos, instituições e relações estáveis. Ele acha que a velha noção unitária já não é viável, dado que a cultura tradicional entrou em colapso, e identifica uma gama de respostas possíveis. Uma consiste na insistência dogmática na unidade. Outra é o regresso a sistemas de crença, como os fundamentalismos, para impor a conformidade. Uma terceira é abraçar a ideia dum eu fragmentado. Lifton diz que esta é uma opção perigosa, que poderá mergulhar numa "fluidez desprovida de conteúdo moral e forma interior sustentável". Mas Lifton encara uma outra possibilidade, a dum eu multiforme saudável. Este, tal como Proteu, é capaz de sofrer transformações fluidas, mas assenta na coerência e numa perspectiva moral. É múltiplo mas integrado. Mesmo não possuindo uma identidade unitária, podemos ter consciência dessa identidade."

Deixei todas as palavras porque a perspectiva de Turkle é a do impacto da tecnologia digital na noção de Eu, que de individual e unitário está a evoluir para uma ideia de Eu multifacetado, um todo fragmentado coerente. Mas gostaria de sublinhar a ideia de retrocesso a sistemas de crença como forma de combater a inegável decadência da cultura tradicional. Está talvez aí a resposta para a questão da preponderância da religião.

A nova sociedade em que vivemos depende de um constante fluxo de transformações, cada vez mais rápidas. A estabilidade tradicional da civilização humana está a ser substituida pela ideia de acelaração, de fluidez, de movimento. Citando novamente Turkle: "Cada era constrói as suas própras metáforas, tendo em vista o bem-estar psicológico dos indivíduo. Há não muito tempo, a estabilidade era socialmente valorizada e culturalmente reforçada. Papéis rígidos atribuídos a cada um dos sexos, trabalho repetitivo, o desejo de ter o mesmo tipo de emprego ou permanecer na mesma cidade ao longo de toda a vida, tudo isto fazia da consistência um elemento central nas definições de saúde. No entanto, estes mundos sociais estáveis entraram em colapso. Nos nossos dias, a saúde é descrita em termos de fluidez, mais do que estabilidade. O que conta é a capacidade de mudar e adaptar-se - a novos empregos, novas perspectivas de carreira, novos papéis atribuídos a cada um dos sexos, novas tecnologias.

Estas transformações são angustiantes. O mundo contemporâneo, com as suas incertezas, com as suas contínuas transformções, é angustiante, particularmente para aqueles que cresceram no seio de culturas que valorizavam a estabilidade e que agora se vêem numa cultura de acelaração baseada na tecnologia. A religião surge como bastião último de uma certa ideia tranquilizadora de certeza, onde os princípios milenares são imutáveis, para muitos, um oásis onde podem fugir à realidade, à nova e fascinante realidade da nossa cultura global.