sexta-feira, 19 de outubro de 2007
Os Negros Anos Luz
Brian Aldiss, Os Negros Anos Luz, Livros do Brasil, 1992
SF Signal | The Dark Light Years
SF Signal | The Dark Light Years
O que é que aconteceria se a humanidade se encontrasse com uma espécie alienígena? É uma questão clássica abordada pela ficção científica. A ideia é fascinante: como conceber o contacto com uma espécie alienígena? Quais seriam os pontos de contacto culturais, os modos de pensar, qual seria o código comum que permitiria alguma forma de comunicação entre duas espécies vindas de diferentes planetas?
A resposta literária da FC a esta questão varia, desde os épicos mais clássicos da era de ouro, em que os aventureiros espaciais se deslumbravam nas exóticas culturas dos seres alienígenas ou aniquilavam monstros maléficos em paisagens interplanetárias, à FC mais interessada numa reflexão séria sobre as condicionantes e consequências de um encontro entre a humanidade e uma espécie alienígena.
As ideias são mais que muitas, e vão desde uma fácil compreensão mútua até à incapacidade total de comunicação devida às enormes diferenças entre as estruturas cognitivas humanas e as estruturas cognitivas de hipotéticas espécies alienígenas. Independentemente da perspectiva adoptada, na mente dos escritores de Fc encontramos sempre uma referência à história da humanidade, aos antecendentes de contactos entre grupos humanos, de contactos entre culturas.
Um exemplo óbvio é o contacto entre a cultura colonial europeia e as culturas nativas das zonas colonizadas, que se saldou geralmente pela aniquilação quase total da cultura nativa. As ideias de superioridade rácica, de culturas superiores e inferiores, o fardo do homem branco, a civilização dos selvagens, estão por detrás de momentos da história da humanidade de que os autores de FC se socorrem para antever como aconteceria um contacto entre a humanidade e seres alienígenas.
Em Os Negros Anos Luz Brian Aldiss descreve de forma altamente satírica o que de pior pode acontecer num contacto cultural: a incompreensão total, aliada ao conservadorismo civilizacional que postula a existência de raças superiores e inferiores distinguíveis por critérios viciados, que acaba por levar à extinção de uma das espécies.
Na obra, Brian Aldiss descreve o encontro entre homens e Utods, uma bizarra civilização avançada que tem muito pouco de comum com a humanidade. Dotados de uma linguagem constituída por assobios modulados ao longo do espectro de frequências sonoras, donos de uma civilização avançada que conjuga a tecnologia e a indústria com o artesanato, e que valoriza acima de tudo uma visão de fertilidade que reverencia a natureza, expressa através de um profundo respeito pelo defecar e pela solenidade do rebolar nas fezes.
Avisei-vos que Os Negros Anos Luz é uma obra satírica.
A humanidade futura imaginada por Aldiss nesta obra projecta os piores vícios humanos no futuro e no espaço - o nepotismo, o racismo puro, imaginando um futuro conservador que é um retrocesso social, onde o papel da mulher, por exemplo, se alterou num retrocesso a valores vitorianos e onde a agressividade cega é valorizada sobre o bom senso. Disparar primeiro, e fazer perguntas depois é a norma, especialmente porque as convenções sociais permitem responder com um "eles são menos do que nós, são quase animais". A comunicação entre humanos e utods é quase impossível, não só pelas abismais diferenças, mas também porque não há vontade de fazer um esforço de transcender estereótipos e convenções para compreender a outra culturas. Antes, há um desprezo assumido por tudo o que não se enquadre no padrão de normalidade.
Levada ao extremo satírico, Aldiss reflecte numa questão que descreve muito bem alguns dos mais tristes momentos da história humana e que, algumas décadas após ter sido escrita, ainda domina o nosso complexo mundo, onde a ideia de choques civilizacionais tem tantas vezes subjacente o conceito de desprezo por outras cukturas que não a nossa.
Os Negros Anos Luz é um clássico pertinente, cuja edição portuguesa peca por alguma incoerência de tradução, que estraga o ritmo de uma história que ridiculariza profundamente as atitudes históricas perante o choque de culturas.