sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Os Livros da Minha Vida



Henry Miller, Os Livros da Minha Vida, Antígona, 2004

Wikipedia | Henry Miller

O amor aos livros é vício estranho que toma as mais diversas formas. Há os apaixonados tecnicistas, capazes de distinguir os fólios dos in-fólios, comparando os méritos dos octavos com as encadernações de capa dura e, talvez, desdenhando o livro brochado. Há os que interpretam em reviravolta o velho dito de "não julgues os livros pela capa" e procuram, reconhece, discutem méritos ilustrativos e coleccionam obras a pensar na capa. Há os amantes do livro-objecto, obras que deram mais trabalho a produzir e encadernar do que a escrever e que se destinam a serem expostas, imaculáveis pelo contacto com as mãos de ineptos leitores. Há os escrevinhadores, que sublinham e apontam, que discutem, de lápis em riste, com as palavras impressas. Há os apaixonados dos contos e histórias, capazes de toparem as mais insuspeitas narrativas a léguas. E, finalmente, num nível rarefeito a que poucos conseguem chegar, há os apaixonados pelas ideias, que olham para o livro como uma longa conversa com o autor, conversa enriquecedora feita de acaloradas discussões. Não escrevo isto por elitismo; são mesmo muito raros os que realmente conversam com as obras, que vêem para lá dos caracteres impressos no papel.

Onde é que eu, rato de biblioteca convicto e acumulador de tomos em prateleiras me enquadro? Isso é algo que ainda não descobri...

Os Livros da Minha Vida colige um conjunto de ensaios onde Miller divaga, de uma forma poéticamente brilhante, sobre as obras e os autores mais marcantes na sua vida. São ensaios que ultrapassam largamente o âmbito do resumo de livros que marcaram o autor. Tratam-se de ensaios sobre a literatura e a vida, mostrando de que forma a literatura e a vida se imbricam nos autores e nas suas obras, quando as suas palavras têm realmente significado. Como é normal em Miller, muito do que escreve tem a ver consigo, com as peripécias da sua vida, temperadas com as recordações da obras que lia.

Mais do que sobre páginas empoeiradas, a obra é sobre palavras e ideias, palavras e ideias que apesar de encerradas entre as capas de livros estão vivas e vibrantes, prontas a desafiar e a apaixonar, a intrigar, a surpreender e a iluminar novos caminhos. Mas mais ainda do que sobre palavras, os ensaios de Os Livros da Minha Vida são sobre a vida. A literatura é estéril se não partir da vida, das experiências da vida. Não interessa se é uma vida cheia de peripécias ou uma vida recatada; o importante é manter a mente sempre aberta, incisiva e observadora. Miller tanto elogia a obra de Cèline, autor francês verdadeiramente globe trotter, capataz de explorações de gado sul-americanas e soldado da legião francesa nas areias saarianas, como Giono, homem que passou a sua vida na aldeia no sopé dos alpes onde já o seu pai e o seu avô tinham passado a sua vida.

Os Livros da Minha Vida é uma conversa com um mestre sobre as obras de grandes mestres. Não se esperem os autores académicos, os clássicos que todos consideram fundamentais, leituras importantes que diminuem aqueles que não as fizeram. Miller atira-se mais ao gosto da vida e da literatura, aos autores cujas palavras, literalmente, nos deixam a pensar e nos mostram novos sentidos, novos caminhos, novas vidas.

Os Livros da Minha Vida é uma obra perfeita para bibliófagos, uma obra onde os viciados em tinta de impressão podem encontrar mais alimento para o vício, e reflectir sobre as ideias que são o substrato da literatura. É uma leitura imparável, mas que se faz com inúmeras pausas, pausas para saborear a riqueza das palavras de Henry Miller.