Por vezes somos surpreendidos com referências submersas. Como por exemplo ao acónito, planta que em The Wolfman desempenha um papel no mito do cimena de terror, uma referência às velhas lendas medievais que associavam esta planta, wolfsbane no seu nome inglês, às velhas histórias da licantropia. Que no fundo não passam de velhas histórias que reflectem o fundo selvagem existente na nossa alma. A erudição acima do normal neste filme deve-se a Curt Siodmak, escritor de fc e refugiado do regime nazi, que não por acaso distinguiu no filme o lobisomem com uma marca estranhamente semelhante à marca que distinguia os judeus na alemanha nazi. Um esforço anterior dos estudios Universal, o recomendável Werewolf of London, uma mistura de lobisomens com Dr. Jekill e Mr. Hyde, já apresentava uma planta como elemento essencial no mito do lobisomem, mas era uma planta perfeitamente fictícia.
O acónito é um pequeno detalhe de um filme marcante que só peca pela escolha de um actor canastrão. Se Bela Lugosi estabeleceu o paradigma de Drácula e Boris Karloff marcou o ícone de Frankenstein, digo, do monstro de Frankenstein, Lon Chaney Jr nunca foi convicente no papel de homem lobo. Enquanto lobo, mais se assemelha a um cão rafeiro e medricas; enquanto homem torturado pela maldição, não consegue mais do que expressões lamechas de criança a quem tiraram um brinquedo... ou que se magoou, fazendo um doi-doi. Mas são também estas idiosincrasias que décadas passadas sobre o filme ainda lhe despertam mais interesse.
Quando na Idade da Fábula de Thomas Bulfinch li o mito de Aracne, fiquei surpreendido. Recordando o mito, diga-se que Aracne era uma extraordinária urdidora e tecedeira, sem par no mundo do mito grego. Orgulhosa, atreveu-se a desafiar a deusa Minerva para lhe mostrar que a sua arte era superior à da deusa. Má ideia; sempre que os homens desafiam deuses, algo corre mal. Minerva, deusa da sabedoria, deu a Aracne oportunidades para se redimir do orgulho desmedido que a levava a crer ser superior aos deuses. A coisa foi resolvida com desportivismo, com uma competição em que Aracne e Minerva teciam, cada qual dando o melhor da sua arte. Uma versão muito feminina do julgamento de Páris, se me permitirem o comentário machista. Não estava em causa a arte de Aracne, estava sim em causa a sua sobranceria perante a deusa, que irritada como só os tão humanos deuses gregos, destroi a tela que Aracne com tanta arte urdia, e enlouquece Aracne com vergonha. Aracne enforca-se, pondo termo à sua vida, mas Minerva, uma vez desvanecida a sua raiva, compadece-se da tecedeira, concede-lhe a imortalidade, mas de uma forma a que para sempre se recorde do seu desmedido orgulho. Minerva transformou a sua rival numa criatura minúscula, para sempre condenada a tecer, a urdir e a pendurar-se. É de Aracne que vem a palavra Aranha. Os velhos mitos, memes milenários, revivem-se na linguagem do dia a dia.
Pois, isto realmente da humanidade se sobrepôr aos seus deuses é ideia que ainda hoje levanta sobrancelhas e aquece os ânimos.
Idade da Fábula de Thomas Bulfinch é um daqueles clássicos que é sempre bom ter na mesa de cabeceira. Obra já velhinha, mais do que centenária, é uma recolha de mitos gregos, romanos, celtas e egípcios publicada por um académico que via o declínio do conhecimento dos clássicos e tentou mostrar o valor da cultura clássica. Legou-nos uma obra imortal, uma leitura agradável, e uma referência cultural.
O que é que o mito de Aracne tem a ver com o velhinho filme dos anos 30? Minerva transforma Aracne em aranha através da aplicação de sumo de acónito. Mais uma vez, os velhos mitos mostram-se pervasivos.