terça-feira, 15 de maio de 2007

Mão invisível

Ontem vi-me na contingência de levar o meu velho carro à oficina, para a revisão que antecede a obrigatória inspecção anual ao veículo. É coisa boa; distraído como sou, se não fosse pelas inspecções só levaria o carro a uma oficina quando ele avariasse de vez...

Sem carro, ontem optei por utilizar os transportes públicos, com um olhinho a substituir a viagem diária até ao local de trabalho por um percurso em transportes públicos. Talvez poupe dinheiro, com o gasóleo cada vez mais alto, e certamente que faria melhor ao ambiente. Seria menos um carro nas estradas.

Uma análise aos horários das carreiras de autocarros depressa me fez esquecer essa ideia. De carro, com trânsito, o percurso entre a minha casa e o meu local de trabalho (entre a Ericeira e a Venda do Pinheiro) pode demorar no máximo quarenta minutos - e se demorar, é porque apanhei muito trânsito. De autocarro, estava previsto que demoraria cinquenta minutos, sem contar com o trânsito. Pior, à excepção das horas de ponta, a regularidade das carreiras mede-se de hora em hora. Mesmo assim, viver no eixo Ericeira-Mafra é bom para quem tem de recorrer aos transportes - quem vive nas outras localidades que tanto nos esquecemos que fazem parte deste concelho não tem sequer o luxo de poder contar com um autocarro de hora em hora. Pensem mais em dois ou três... por dia.

Entretanto, Mafra enche-se de asfalto. Enquanto aguardei na paragem de autocarros, observei a infinda procissão de automóveis. Grande parte deles poderia ter muito bem ficado estacionado, se os condutores recorressem aos transportes. Mas como, e para quê, se a rede de transportes públicos não oferece a versatilidade e a comodidade do veículo particular? Talvez se as redes de transportes fossem mais bem pensadas, bem implantadas, como autocarros com grande periodicidade a circular entre as localidades, mais automóveis poderiam ficar estacionados. Mas não é isso que acontece. A combinação entre a inércia, a estupidez e a cupidez dos poderes instituídos tem controbuído para o efectivo desmantelamento das redes de transportes públicos, em favorecimento de uma cada vez mais abrangente rede de estradas e auto-estradas destinada a servir um cada vez maior número de véiculos pessoais... que não estariam todos os dias nas estradas, se as redes de transportes fossem eficientes e bem geridas. Não é culpa do mercado. A mão invisível do mercado só age de acordo com os seus interesses. O que não dá lucro, não interessa. Agora, queremos mesmo subordinar tudo à lógica da eficiência baseada unicamente na rentabilidade?

Quem pode, tem carro. As nossas vilas e cidades modificam-se à volta do omnipresente veículo. Qualquer supermercado que se preze rodeia-se de um vasto parque de estacionamento. Se fica perto de uma paragem de autocarros ou estação de comboios é coisa que pouco interessa. A estrutura urbana que nos rodeia está pensada unicamente em função do automóvel. E quem não tem automóvel, perde assim o acesso pleno às estruturas urbanas. Mas também aqui a lógica de mercado se aplica. Quem não tem automóvel não o tem por ser muito jovem, por não ter condições financeiras ou por ser idoso. Grupos demográficos que não atraem investimentos. Não são rentáveis.

Convenhamos que por detrás da retórica ambiental que defende o conceito de transporte público movem-se enormes interesses financeiros. Não é uma mão gigantesca e invisível, é uma míriade de mãos de vários tamanhos, desde a do mecânico do bairro à da multinacional, cujos interesses estão na manutenção do paradigma do transporte automóvel pessoal. O transporte público não dá muito dinheiro. É preciso um investimento enorme em infraestruturas, rentabilizáveis apenas a muito longo prazo. Entretanto, cada automóvel é a fonte de um rio de dinheiros que alimenta indústrias, banca, serviços e impostos.

Nesta época em que vivemos as agruras de um ambiente cada vez mais danificado pela acção humana, urge investir em formas mais racionais de vida. No entanto, continua-se plantar asfalto. Dá que pensar, enquanto vemos o concelho de Mafra a dar passos decisivos para se transformar em mais uma zona IC19, alegremente e em nome de uma ideia retrógrada de progresso. As coisas têm mesmo que ser assim?