sexta-feira, 4 de maio de 2007

Missile Gap


Missile Gap

Charles Stross | Missile Gap

Quais são os ingredientes de uma boa história de FC? Aventura, exotismo, cenários bem delineados, personagens credíveis, mesmo que surreais e alienígenas, adereços futuristas. Mas isto só não chega para uma grande história de FC. Obras que tenham estes ingredientes são sem dúvida divertidas e interessantes, se bem escritas, mas há algo mais que transforma uma corriqueira obra de FC em algo mais pertinente. Para além de todos os ingredientes bem conhecidos que associamos à FC, se a obra tiver um conceito, uma ideia-chave à volta da qual tudo acontece, um pormenor central que vai dar o espírito à obra, estão lançadas as bases para uma excelente obra de FC. No fundo, é essa a definição original de Ficção Científica (ou especulativa, não sou esquisito com rótulos): uma história que gira à volta de uma ideia ou conceito científico. De que ciência, fica em aberto: as ideias pertinentes em FC transgridem limites; obras de FC não se apoiam necessáriamente em ciência dura, como no caso paradigmático da obra de Philip K. Dick, onde a ciência tecnológica se desvanece para dar lugar a profundas reflexões sobre ciências sociais, sobre história e política. E, claro, obras de FC de peso não se limitam a um conceito. Parte do profundo gozo de ler FC advém precisamente de tentar perceber que ideias o autor deixou na textura da sua obra.

Não me levem a mal a palavra ingredientes. Estou apenas a suavizar o potente conceito de recursos estilísticos.

O conto é uma das mais antigas tradições da FC (é de recordar que a FC como género já se pode dizer centenária). Originalmente, a FC cresceu a partir de contos publicados nas fabulosas revistas pulp, que não paravam perante nenhum limite de imaginação e onde a verosimilhança era, felizmente, deitada às urtigas. O conto, e as revistas de FC, ainda assumem grande importância no panorama literário, embora a tradição quase selvagem dos primeiros tempos tenha sido substituída com um grande cuidado editorial. O conto de FC é uma constante na obra de qualquer autor do género, e os prémios que distinguem o género literário não esqueceram a importância do conto.

Missile Gap, escrito por Charles Stross, está nos limites entre o conto e o romance. Não é a história curta do conto, e também não é a história longa e profunda do romance. Está numa categoria definida como novella, cuja versão portuguesa desconheço. Será... novela? Essa palavra está tão carregada de conotações negativas, graças às depredações televisivas. Missile Gap foi um dos textos da categoria escolhidos para os prémios Locus de 2007 e, após uma leitura à obra, muito bem escolhido.

Missile Gap é uma daquelas obras de pura especulação científica que nos tiram o tapete e nos desorientam. Em 1976, o mundo está um pouco alterado. A crise cubana de 1962 degenerou em guerra nuclear, mas o planeta - e a espécie humana - foi poupado. Por intervenção não se sabe bem de quem, sea divina ou alienígena, o planeta foi transportado para a superfície plana de um gigantesco círculo. Abrem-se novos horizontes, para colonos em busca de novos continentes, para exploradores em busca dos segredos deste estranho novo mundo. Os velhos dilemas, as velhas guerras continuam. As constantes físicas podem ter ficado difusas, mas o poderio atómico, e o estado de guerra entre os tradicionais inimigos da guerra fria está iminente. Entretanto, quem explora o estranho novo mundo é surpreendido por estranhos achados.

Yuri Gagarin, ex-cosmonauta tornado redundante por um mundo de onde os foguetões não conseguem escapar, torna-se explorador. Num ekranoplano modificado, Gagarin parte à descoberta de novos continentes, e encontra segredos incómodos. Na américa, Carl Sagan vê novo alento na busca de vida extraterrestre, até ser eliminado por se aproximar demais da verdade. E num novo continente, a assistente de um cientista encarregue de explorar as novas terras descobre o inacreditável: uma colónia de térmites capaz de fabricar utensílios.

Por detrás, nas sombras, estranhas forças convergem para forçar a humanidade a um gigantesco conflito nuclear que a aniquilará. Na superfície plana do círculo, consciências estão em guerra - uma consciência grupal, alienígena, que pretende dominar os estranhos mundos, e literalmente, systematically eliminates yet another outbreak of humanity. Esta é das mais brilhantes frases que li até agora.

A evolução vista através de olhos provenientes de outras evoluções; um mundo-terrarium (conceito que não é novo, eu sei) onde a humanidade e outras espécies jogam o eterno jogo da supremacia biológica. Missile Gap merece uma boa leitura. Está disponível online no site da Subterranean Press.