Ian McDonald | The Djinn's Wife
A FC deslumbra os seus leitores e admiradores com descrições apaixonadas de cenários futuristas e exóticos, que no seu melhor estão para além da nossa imaginação. E inspiram fortemente a imaginação daqueles que tentam dar imagem tangível às visões literárias. Apesar disso, paradoxalmente, podemos acusar a FC de uma certa falta de diversidade cultural. As visões sociais da FC ou são perfeitamente alienígenas, ou são extrapolações da nossa sociedade ocidental, dos nossos mitos, das nossas formas de vida, da nossa crença na bem-aventurança tecnológica. Exemplo máximo está na obra de Arthur C. Clarke, que visualiza futuros onde as sociedades evoluem de forma científica, regrada e lógica. Elementos de outras culturas humanas são muitas vezes parte do cenário, um floreado em muitos casos decorativo, ou então aproximações ocidentalizadas a outras realidades culturais. Estou a pensar nos Maurai de Poul Anderson, visão exótica dos nativos dos mares do sul aplicada a um mundo pós-apocalíptico em que o ocidente se aniquilou numa guerra nuclear, ou nas visões condicionadas pela cultura pop do Japão de William Gibson.
Não estou aqui a fazer o papel de polícia cultural, balançando o casse-tête enquanto pergunto "então, meus senhores, onde é que está esse multiculturalismo, onde é que é dada a devida atenção às minorias étnicas". Também não vou defender aplicações de quotas políticamente correctas de igualdade literária. Os campos de expressão devem ser livres, e um escritor deve escrever aquilho que lhe der na real gana. Geralmente, as obras que respeitam ideários políticamente correctos (ou políticamente incorrectos) em detrimento da liberdade criativa, aplicada em nome de igualdades ou representatividades, são sempre umas coisas sensaboronas. Liberdade criativa significa precisamente isso, liberdade, e é esse o mais valioso aspecto das artes, sejam elas quais forem - a capacidade de nos fazer voar e sonhar, de abrir o caminho para a nossa mente ir mais além, transcendendo limites.
Tudo isto a propósito deste conto de Ian McDonald, nomeado para os prémios Hugo deste ano. The Djinn's Wife é um raro vislumbre de outras realidades futuristas cuja cultura não é a clássica cultura ocidental. Neste conto, Ian McDonald mergulha literalmente na Índia, e leva-a ao futuro, não nos nossos termos, mas nos termos culturais indianos.
O mote de The Djinn's Wife é uma história de amor, entre uma bailarina tradicional indiana e um génio, um daqueles génios que se manifestam como se saídos das lâmpadas das mil e uma noites. Mas pouco há de visão orientalista dos mistérios exóticos do longínquo oriente neste conto. A Índia é uma Índia futura, tão complexa e incoerente como a Índia moderna - a maior democracia do mundo, corroída por intensas desigualdades, mas cuja democracia, incrívelmente, funciona, um país onde milhões ainda vivem em profunda pobreza onde ao mesmo tempo os seus cientistas são capazes de planear missões lunares e que se afirma no mundo da alta tecnologia, onde os esforços científicos nos domínios da astronáutica não são programas de prestígio destinados a propagandear as boas obras do regime instalado no poder (como no caso do programa espacial chinês, caso clássico de propaganda) mas sim esforços genuínos no sentido de moldar um país moderno e desenvolvido a partir das capacidades e tradições do sub-continente.
Ian McDonald projecta a Índia moderna num futuro próximo, num futuro onde a União Indiana colapsou em vários estados que jogam entre si perigosos jogos geopolíticos para dominar os escassos recursos naturais. The Djinn's Wife tem uma poderosa textura alicerçada numa sociedade contraditória, onde tradições milenares e alta tecnologia coexistem com obsessões com a cultura pop, manobras políticas e costumes arreigados na memória. A história de amor entre a bailarina, exímia numa das mais antigas e tradicionais artes indianas, e o génio do conto, sublinha esse contraste entre tradição/modernidade que está no âmago da contemporâniedade das sociedades não ocidentais do planeta. O génio desta história não é um espírito enclausurado numa garrafa, ou numa lâmpada mágica, mas sim uma Inteligência Artificial avançada, quase indistinguível da inteligência humana, excepto pelo seu carácter incórporeo.
A história de amor não tem um final feliz, nesta história onde dois estados indianos estão à beira de uma guerra pelo controle das àguas do rio Ganges, onde as Nações Unidas aprovam leis que visam limitar o desenvolvimento das inteligências artificiais temendo ameaças à humanidade, e onde as velhas tradições se continuam a mostrar arreigadas.
Ian McDonald está a ganhar reputação como um autor de FC capaz de misturar as tradições de outras culturas com as premissas da FC em cokctails vibrantes e poderosos. Depois deste conto, a curiosidade ficou aguçada para o romance River of Gods, em ambiente indiano, e para o recém publicado Brasyl, onde o nosso país irmão é projectado no futuro.
The Djinn's Wife está disponível online no site da Asimov SF.