sábado, 7 de abril de 2007

O Império do Medo



Brian Stableford, O Império do Medo, Clássica Editora, 1991

The Empire of Fear
Wikipedia | Brian Stableford

Um dos campos mais curiosos, e do qual confesso o meu desconhecimento, da Ficão Científica é o campo da história alternativa. O que é teria acontecido se... é uma pergunta que todos fazemos sempre que olhamos para algum momento-chave da história. O mundo é como o é e, ao olharmos para trás, para os acontecimentos históricos, parece-nos haver uma espécie de fio condutor de acontecimentos que se sucederam com uma lógica, um caminho através nos tempos que parece inalterado. Mas somos humanos, e seguir caminhos pré-programados é coisa em que não somos muito adeptos. Nós somos caoticos, confusos, de vontades difusas e certezas fugidias. Os acontecimentos históricos dependeram das vontades difusas daqueles que nos precederam, tal como o futuro dos nossos descendentes dependerá das nossas vontades e será modelado pelas nossas atitudes. Aliás, tendo em conta os terríveis prognósticos ambientais, é de levantar a questão se os nossos descendentes terão futuro... e se as nossas vontades serão suficientemente fortes para vencer a ganância e a cupidez que despovoam os nossos oceanos, poluem os nossos ares e aniquilam o ecossistema do único planeta que conhecemos capaz de albergar vida.

Creio que é algo que todos fizemos. Olhar para um facto histórico, e pensar... como é que seria se... se D. Afonso Henriques não se tivesse rebelado contra a soberania de Leão? Se os conjurados de 1640 tivessem sido derrotados? Se a revolução francesa tivesse morrido debaixo dos canhões da realeza? Se Cortéz e os seus sequazes tivessem sucumbido às doenças da selva da américa central, mantendo os Aztecas como um império independente?

Normalmente, os escritores que tentam a história alternativa não olham muito para a história portuguesa, bem o sei. Geralmente as questões giram à volta da queda do império romano, especialmente na obra de Robert Silverberg, das histórias alternativas americanas saídas da pena de Harry Turtledove, ou o inevitável tema da Alemanha Nazi com os inevitáveis e se sobre a vitória Nazi, sobre bombas atómicas, ou sobre o que aconteceria se Hitler tivesse sido neutralizado antes de se tornar uma ameaça. Mas note-se que estou aqui a falar de história alternativa - onde os escritores imaginam o que teria acontecido se acontecimentos chave da história mundial tivesse decorrido de outra forma, e não de viagens no tempo, com todas as suas vertentes de interpretação sobre o que aconteceria se os acontecimentos fossem alterados por viajantes vindos do futuro. Algo que me trás à memória um conto fabuloso do venerável mestre Ray Bradbury, em que uma simples borboleta pisada altera subtilmente a história mundial, mas a subtileza esconde uma alteração profunda do carácter da humanidade.

Em O Império do Medo, as perguntas que Brian Stableford se faz são um pouco diferentes. Brian pergunta-se o que é que teria acontecido se Àtila e o consul romano Aetius tivessem juntado as suas forças, perpetuando uma nova ordem mundial assente num vasto império da china à Ibéria, onde as nações modernas existiam sob a égide dos cavaleiros de Àtila. Mas mais do que isso, Stableford pergunta-se o que é que aconteceria se Àtila e os seus correlegionários fossem... vampiros, perpetuando o seu domínio sobre a europa durante séculos.

Stableford faz entrar a narrativa naquela que seria a Londres iluminista do século XVII, agora ainda sob a égide de Ricardo Coração de Leão, rei medieval que se perpetuou através do vampirismo. O livro apresenta-nos a Edmund Cordery, cientista dotado para os engenhos, mecânico exemplar, antigo amante de uma dama vampiro - pela sua beleza, as mulheres vampiro são o supra-sumo da sexualidade nesta obra, algo que cai muito bem dentro dos mitos vampíricos, sempre com a sua sexualidade tão vincada. Cordery, fiel servo da corte, conspira em segredo para destruir o domínio dos vampiros. Dedica-se a perscrutar os segredos infinitesimais através de um microscópio, tentando compreender os vampiros através da ciência, única arma que crê ser eficiente para combater um poder baseado no misticismo. Cordery acaba por morrer, tentando contagiar os vampiros com uma peste mortífera, mas apenas consegue fazer tombar a sua amante.

Será Noel, o filho de Cordery, quem conseguirá atomizar a sociedade imperial. Unindo-se a Quintus, um monge erudito, a Langoisse, um pirata que desejava ser vampiro e não o podendo ser odeia os seus mestres, e a Leylah, amante de Langoisse e antiga escrava arábica. Juntos graças a acasos e à luta comum pela humanidade, fogem das perseguições na Inglaterra e refugiam-se em Àfrica, terra de mistério onde os vampiros parecem não dominar. Ao norte, a estrita religião muçulmana persegue e aniquila qualquer vampiro, e nas profundezas da Àfrica negra, os vampiros assemelham-se a criaturas shamânicas, respeitados e temidos pelas tribos, embora nunca as tenham tentado dominar e moldar numa unidade política semelhante ao império vampiro controlado por Átila e Carlos Magno.

Estes aventureiros penetram nas trevas de uma Àfrica inexplorada e perigosa, guiados por vampiros africanos e os seus seguidores, em busca da lendária Adamawara, a terra onde vivem os vampiros africanos. Estes não são os vampiros violentos e sedentos de sangue e poder que dominam a europa; estes são seres imortais, a quem a passagem dos séculos retirou vitalidade e acuidade. Quanto mais séculos vivem, mais se acomodam, mais perdem o espírito de aventura, a curiosidade e a necessidade de descobrir. Do alto da sua profunda sabedoria, os vampiros de Adamawara desdenham as invenções da ciência. Não entendem sequer a ideia de progresso científico.

Em Adamawara, Noel consegue observar os aterrorizantes e sangrentos rituais místicos que transformam os homens em vampiros com os olhos da ciência, e descobre uma forma de transmitir o vampirismo - compreendendo, embora de forma rudimentar, que o vampirismo é uma mutação e não uma magia, que pode ser criada uma fórmula que induza o vampirismo. Esta fórmula, e a disseminação dela através da Europa e da recém-descoberta América - designada no livro por continente Atlante, pois os descobrimentos portugueses haviam sido formalmente proibidos por Roma, não havendo por isso um Colombo para navegar para ocidente - convulsiona toda a sociedade. Mas Noel não vive para ver a transformação. O vampirismo é no fundo uma mutação celular induzida que torna as células, e por extensão, o corpo, virtualmente imortal. A necessidade de sangue envolve apenas a necessidade de renovação celular. Todos os que tomam a fórmula de Noel tornam-se vampiros, excepto aqueles que são imunes às mutações. E Noel é imune. Acaba por morrer numa fogueira, em Roma, condenado pela heresia de ter desafiado o poder dos vampiros. Mas a revolução que iniciou triunfará.

O fim de Noel é particularmente empolgante, com um violento ataque desferido a Malta, refúgios dos vampiros cavaleiros hospitalários, que acolhem os dissidentes e começam a disseminar a imortalidade vampírica. Aqui entra em cena um dos chefes vampiros, amante das estacas de empalamento, o lendário Drácula, cujo nome é sinónimo de tudo o que associamos às lendas sobre o vampirismo.

O epílogo da obra traz-nos ao final do século XX, a uma sociedade semelhante à nossa mas radicalmente diferente. Aqui, a história descreve um círculo completo, enquanto observamos os dramas da vida de um jovem desfigurado num acidente automóvel, que sofre de cancro e é imune à imortalidade vampírica. A imortalidade é um estado normal de vida, conferido a todos os que o desejarem de forma médicamente assistida. O pai do jovem é cientista, e redescobre Adamawara através de uma expedição arqueológica em que se descobre a causa inicial do vampirismo: um meteoro que contaminou a àrea com adn extraterrestre. Talvez a dádiva da imortalidade seja obra do acaso, talvez seja benevolência de uma civilização extraterrena.

O Império do Medo é uma obra estimulante, que consegue misturar de forma coerente muitas ideias díspares. À partida, mistura terror e história alternativa numa narrativa de pura ficção científica. Mas mais do que uma simples história escapista, O Império do Medo é uma fábula sobre o triunfo da ciência sobre o obscurantismo, da razão sobre a superstição. Ao ler sobre Noel nas fogueira romanas, acusado de heresia por um papa corrupto instigado por poderosos reis que não se compadecem com os sofrimentos que infligem ao povo, não pude deixar de pensar em Giordano Bruno, ou em Galileu, em todos aqueles que viram a sua vida dificultada ou acabada pela reacção dos poderosos à busca da verdade científica. Para além disso, é um livro que contém visões arrojadas de como os factos históricos poderiam ter acontecido, aventuras através de continentes desconhecidos, e vampiros. A atracção exercida por este mito é por demais aliciante.