O violento episódio de tiroteio na Universidade da Virgínia, mais um epísódio na série de actos violentos em escolas americanas que podem ir desde a primária até à universidade, actos imprevisívecis e sangrentos de extrema violência que surpreendem chocam o mundo, foi recebido com a habitual litania de coros que se erguem dizendo que tal só é possível na América, apregoando a nossa moralidade, superior à deles.
Perdoem-me, mas discordo.
É um facto que acontecimentos como o tristemente famoso massacre de Columbine (imortalizado no excepcional e excepcionalmente parcial documentário de Michael Moore) ou este na Virgínia normalmente só acontecem na américa. Há uma série de razões por detrás disto, nomeadamente a facilidade com que se adquirem armas dos mais diversos calibres, a militarização de um país que se orgulha da sua superioridade militar, alicerçada na alta tecnologia, e um factor de carácter cultural que se prende com a própria mitologia americana. A constituição americana garante aos indivíduos o direito de serem portadores de arma, ideia que vem dos tempos da fundação do país e que tem como germe a ideia da rebeldia individual que opôs os colonos americanos às depredações e abusos da coroa britânica. Para os americanos, o porte de arma está intimamente ligado à independência, e a cultura da arma está firmemente instituída no imaginário americano - pense-se na américa dos primórdios, conquistada à força de mosquetes, pense-se no Oeste americano, onde imperava a lei da bala, pense-se nos gangsters dos tempos da proibição, tão adeptos da tommy gun. É geralmente aqui que os nossos adeptos da inferioridade moral americana fazem o seu bastião e defendem a vergonha que é estarmos a seguir e a admirar uma nação que se rege sob estes imperativos morais.
Mas aqui a questão é outra, prende-se com a frustração da inevitabilidade do gigante americano.
Eu discordo. Não porque acredite nalguma superioridade americana, mas porque não acredito na superioridade do nosso carácter. O que impede que, por exemplo, aqui em Portugal não hajam massacres como nos EUA é unicamente a severa restrição ao uso e porte de arma. Sempre que há notícia de mortes ou ferimentos com armas de fogo, ficamos chocados, felizmente e compreensívelmente, pois não estamos habituados à presença de armas. Mas mesmo assim, veja-se quantos crimes passionais não foram cometidos à força de caçadeiras. Pessoalmente, creio que ninguém é totalmente inocente, e de certeza que já passou pela cabeça de todos resolver um problema ou uma disputa com outros de forma mais... final. São aqueles momentos de irritação extrema que nos tocam a todos. Não afirmo que isto seja legítimo, ou mentalmente são, mas todos temos momentos em que perdemos a cabeça. Como armas não são coisa que se compre por aí num impulso, geralmente resolvemos este tipo de sentimentos com uma boa bebedeira e por vezes com uma catártica tareia, onde geralmente o feitiço se vira contra o feiticeiro.
As dificuldades no acesso a armas, e a impossibilidade de acesso por meios legais a armas de calibre elevado, assegura também que aqueles que estão mentalmente perturbados não tenham acesso a armas de fogo. Um doente mental pode partir a cara a todos os que encontra na frente, ou na pior das hipóteses dar facadas, mas a coisa não passa daí. Quem fala em doente mental pode facilmente falar em criminoso ou irresponsável. E nem quero pensar o que seria um adolescente frustrado, com as hormonas a correr-lhe no sangue, de juízo toldado e de arma na mão.
Agora, experimentem remover as barreiras que dificultam o acesso às armas. Têm assim tanta certeza que coisas como as que se passaram na Virgínia não se passariam por cá?