segunda-feira, 30 de abril de 2007

A Deepness in the Sky



Vernor Vinge, A Deepness in the Sky, TOR books, 1999

Wikipedia | A Deepness in the Sky
Wikipedia | Vernor Vinge
John Clute | A Deepness in the Sky

Confesso o meu fraquinho pelas space operas. Dentro dos vários sub-géneros da FC, a space opera é um género que se alicerça em vastos dioramas galácticos, onde os acontecimentos narrrados nas histórias se passam a níveis verdadeiramente cósmicos. A space opera é ao mesmo tempo um desafio e uma delícia. A criatividade pura, por vezes surreal, dos escritores de FC encontra neste género uma tela gargantuesca para se desenvolver sem limites. Pode não ser dos géneros mais pertinentes da FC, mas é sem dúvida o género que melhor captura aquele sentimento tão peculiar de espanto perante as maravilhas do universo, o sentimento de assombro perante as vastas paisagens do universo, o sentimento de esperança e aventura. É também uma forma de FC eminentemente escapista - a space opera propicia todas aquelas histórias de aventuras através das galáxias, com míriades de raças alienígenas, vastas paisagens planetárias de tirar o fôlego, exóticas sociedades dispersas pelo vácuo interestelar, tecnologias futuristas e, claro, gloriosas naves espaciais. No seu nível mais simples, a space opera resolve-se em histórias de aventuras passadas por entre cenários que misturam os ingredientes da FC. Pensem, por exemplo, em dois produtos cinematográficos bem conhecidos - a incontornável saga da Guerra das Estrelas ou o indescritível As Crónicas de Riddick (filme onde as únicas coisas que se safam são os cenários, os adereços e a iluminação, indicativo da altíssima qualidade dos concept artists que trabalharam no filme). São dois típicos exemplos de space opera sem pretensões de profundidade, bem conhecidos do grande público.

Como tela vasta que é, a space opera, nas mãos dos melhores autores de FC, representa um género assombroso, onde a mestria da imaginação se mescla com profundas reflexões sobre a natureza das civilizações, com exotismo estético e reflexões aturadas sobre tecnologias futuras. Nas mãos de autores como Samuel R. Delany, Poul Anderson, Ben Bova ou Frank Herbert a space opera desvenda-se numa imensa grandeza, que deixará qualquer leitor abismado com a vastidão dos voos de imaginação literária. As aventuras tornam-se meros fios condutores, tornando-se as análises implícitas nos vastos panoramas o verdadeiro ponto de interesse que agarra a mente do leitor.

Abragência. Diorama. Vastidão. Exotismo. É aqui que reside a força da space opera.

Todos estes elementos estão presentes em A Deepness in the Sky, de Vernor Vinge. Discípulo de Poul Anderson, Vinge consegue criar space operas que ao mesmo tempo são contos excitantes de aventuras e interessantes variações sobre a natureza das espécies, a natureza das civilizações e a natureza dos sistemas informáticos. Este último aspecto não surpreende se nos recordarmos que Vinge é professor de matemática e ciência computacional na universidade de S. Diego, continuando assim a tradição do cientista que se tornou cientista inspirado na FC e que utiliza a FC para exprimir as suas ideias. Tal como Rudy Rucker, David Brin e tantos outros, Vinge pertence àquele grupo de cientistas que escolhe a FC para demonstrar a ciência com a força da ficção, o que significa que não só produzem obras de leitura interessante como alicerçam profundamente os seus voos de imaginação nos paradigmas científicos. As boas space operas são normalmente relativísticas (as viagens no espaço obedeçem aos limites da teoria da relatividade e aos constrangimentos da velocidade da luz) ou quando não o são, espelham conceitos dos campos mais exóticos da física (como os wormholes que Peter F. Hamilton utilizou de forma tão singular).

Sendo A Deepness in the Sky uma abrangente space opera, seria demasiado moroso e confuso deixar a sua estrutura aqui espelhada. Fico mesmo pelo resumo, até porque este é um livro que merece várias leituras. A textura das suas palavras não se esgota numa só leitura, e revisitar o livro faz-nos atentar na riqueza dos seus pormenores. Fixemos, então, a tela, e com pinceladas soltas tentemos resumir a obra.

Tudo se passa no vasto espaço intergaláctico. O tempo é indefinido, mas sentimos que estamos num futuro longínquo, em que a humanidade se espalhou através da galáxia. Apesar da vastidão do espaço humano, os limites relativísticos impõem-se às vastas distâncias dos golfos espaciais. As indústrias espaciais e os voos dentro de sistemas são comuns nos planetas habitados, mas a ligação entre aos vários planetas, entre as várias humanidades, está a cargo da frota da organização Qeng-Ho, organização ad-hoc de famílias de comerciantes que atravessam os espaços interplanetários levando produtos entre planetas. Sujeitos como estão aos limites da relatividade, os Qeng-ho viajam em enormes naves, vivendo entre turnos de suspensão criogénica. O tempo que demoram a viajar entre planetas condiciona a sua visão da humanidade. Entre os vastos tempos, as civilizações tornam-se luzes fugazes na escuridão galáctica. Para os Qeng Ho, as civilizações não são algo de estável. Regresssam muitas vezes a planetas cujas civilizações se destroem e reconstroem. Todos os planetas passam por isso, todas as civilizações colapsam e renascem. À escala galáctica, o tempo da grandeza dos homens é ínfimo. Os Qeng-ho, e as suas transmissões constantes de informação que permitem a civilizações caídas erguerem-se mais rapidamente, são a cola que une a humanidade tresmalhada pelo espaço.

Os Qeng-ho poderiam ter sido mais do que um aglomerado de mercadores crentes nas delícias do mercado livre aplicado às vastidões estelares. No seu início, sob o comando de Pham Nuwen, homem nascido por entre fortalezas medievais mas cuja adolescência foi passada nas entranhas de uma nave espacial, os Qeng-ho quase se tornaram um império galáctico, tentando estabilizar o vacilar das civilizações planetárias, mas o espírito libertário e empreendedorista dos Qeng-ho deitou por terra as pretensões hegemónicas de Nuwen.

Séculos, possívelmente milénios depois, uma expedição de Qeng-ho chega à orbita de um mistério estelar: a estrela On/Off, uma estrela que literalmente se liga e desliga com periodicidade exacta. A estrela é orbitada por um único planeta, e nesse planeta foram detectadas emissões de rádio, sinal inequívoco de presença de uma civilização alienígena. A bordo da expedição segue, disfarçado, Pham Nuwen, recolhido pela frota na sua última paragem num sistema planetário civilizado antes da viagem ao novo sistema estelar.

Por uma vez, os Qeng-ho não estão sós no espaço estelar. Ao chegar à órbita da estrela, tomam contacto com frota dos Emergentes, uma civilização humana desconhecida, oriunda de um sistema estelar onde a civilização original havia colapsado, e cuja recuperação dera origem à sociedade conhecida como a Emergência (não emergência de 112, mas sim emergência de emergir), uma sociedade totalitária apoiada numa classe de escravos quase autistas que desempenham as funções que normalmente se entregam à precisão dos sistemas informáticos. Os emergentes, sob a capa de uma tranquila condescendência, são o pior pesadelo fascista, apoiado na tecnologia. Pensem numa combinação de nazismo com 1984 e têm a noção do que são os emergentes.

O confronto é inevitável. Os emergentes atacam à traição, contaminando os Qeng-ho com um virus cerebral, mas ambas as frotas quase se aniquilam no violento conflito que se segue. Os Qeng-ho são derrotados, mas a vitória dos emergentes é pírrica. Os sobreviventes são forçados a unir esforços para sobreviver na órbita estelar, esperando que os nativos do planeta desenvolvam uma base industrial suficientemente avançada que permita reparar as naves. Para os Qeng-ho este tipo de situações são normais - mais de uma vez foram forçados a ajudar planetas a evoluírem para poderem reabastecer as suas naves, mas esta situação é nova. Os emergentes controlam tudo com punho de ferro. Os Qeng-ho sobreviventes são forçados a acatar as novas regras, algo tornado mais fácil pelos métodos traiçoeiros dos líderes emergentes, adeptos do uso da mentira política como forma de controlo de massas. Emergentes e Qeng-ho coexistem, acabando por se irem aceitando uns aos outros, embora os Qeng-ho estejam intimamente revoltados com os métodos emergentes - especialmente com o método da focalização, que permite manipular uma virose mental de forma a focalizar o cérebro de um indivíduo numa tarefa, transformando-o numa especie de máquina biológica autista, o escravo perfeito - um escravo que se revolta se não puder trabalhar.

Apenas Nuwen se opõe aos emergentes, na mais pura clandestinidade. Durante as décadas de exílio, Nuwen manobra-se de forma a tentar derrubar o regime emergente, e... quase o consegue.

É na superfície do planeta que encontramos o aspecto mais interessante de A Deepness in the Sky. Vernor Vinge tem um talento especial para criar civilizações alienígenas que tocam as raias do surreal, e nesta obra dá-nos um conceito estranhíssimo: uma civilização de seres aracnóides, perfeitamente adaptada aos ciclos da sua estrela. Hibernam durande duzentos e trinta anos, enquanto a estrela está "desligada" e o planeta congela, e desenvolvem vastas e complexas civilizações nos sessenta anos de luz no ciclo "ligado" da estrela. Vinge detalha o seu desenvolvimento civilizacional. Quando nos foca na civilização aracnóide, coloca-a num nível tecnológico semelhante aos dos inícios do nosso século XX. A tecnologia já permite que os seres vivam durante alguns dos primeiros anos da Escuridão, mas a influência de uma aranha particularmente genial, Sherkaner Underhill, misto de Einstein e Newton, vai catapultar a sociedade aracnóide para uma era de desenvolvimento sem par. No seu primeiro ciclo, Sherkaner desenvolver um sistema que permite a uma equipe especial acordar no tempo profundo da escuridão, algo nunca sequer sonhado na sociedade aracnóide, e desferir um ataque de precisão às instalações militares de uma nação inimiga, terminando assim uma guerra que se assemelhava à primeira guerra mundial. Nos sessenta anos do ciclo seguinte, Sherkaner e as suas ideias radicais são responsáveis por uma profunda alteração à sociedade aracnóide. A tecnologia desenvolve-se a um passo imparável, e pela primeira vez na história a civilização manter-se-á acordada durante os anos da escuridão, graças à energia nuclear. No entanto, o desenvolvimento tecnológico não é uniforme, e traz consigo clivagens politicas e sociais que culiminam numa guerra nuclear. Sherkaner tenta evitar o conflito e... quase o consegue.

Se os humanos em órbita conhecem as aranhas, estas não estão conscientes do que paira sobre si. Isto faz parte da estratégia emergente, que é mais do que reparar as suas naves e regressar ao planeta de origem. Os emergentes pretendem conquistar e subjugar o mundo das aranhas, utilizando a sua ciência e tecnologia, bem como os materiais de estranhas propriedades, para conquistar o universo. Para isso, controlam os sistemas informáticos das aranhas, e ajudam secretamente a nação aracnóide que mais se assemelha aos seus ideiais fascistas. As aranhas não têm a noção de que estão a ser vigiadas e controladas, embora alguns estranhos indícios despertem a atenção de Sherkaner, que passa décadas de quase reclusão a tentar encontrar uma forma de conhecer e controlar aqueles que para ele são alienígenas, precisamente através da única linha de comunicação aberta entre o planeta e os humanos - os tradutores, autistas focalizados que descodificam as transmissões aracnóides e as trasnformam em palavras e conceitos compreensíveis pelos humanos.

Tudo culmina numa cúspide de catástrofe. No planeta, as tensões políticas, manipuladas pelos líderes emergentes, provocam uma guerra nuclear, iniciada à traição pelos emergentes, que manipulam os disparos de mísseis aracnóides com o objectivo de provocar uma guerra que enfraqueça as aranhas, facilitando a conquista. Na colónia orbital, refúgio dos emergentes e dos Qeng-ho sobreviventes, Pham Nuwen tenta pôr fim a décadas de tirania, tentando também impedir a aniquilação das aranhas. Nos últimos momentos, com misseis nucleares a voar sob os céus de Arachna e os líderes emergentes trancados nos arsenais em órbita, tudo parece estar perdido, mas Sherkaner consegue intervir - através dos tradutores, revela-se aos humanos, revela aos da sua espécie a traição e a teia de mentiras que os levou à guerra, e controla a nave humana que ataca alvos na superfície de Arachna. A história termina bem, com Arachna salva da guerra nuclear e a entrar numa nova era de exploração espacial, com a libertação dos Qeng-ho e o levantar do jugo da focalização, com a derrota e a punição dos líderes emergentes. O livro termina num toque de esperança, com Pham Nuwen a embarcar numa expedição destinada a libertar a civilização emergente, e com a conjugação entre os Qeng-ho e os aracnóides a prometer uma nova era de revoluções tecnológicas. O estudo do sistema On/Off revela estranhas surpresas, como físicas exóticas que permitem aperfeiçoar as viagens estelares ou um estranho material que contraria a gravidade. O livro parece terminar bem, mas a pressão da vastidão da escuridão interestelar está sempre presente.

Antes de escrever esta obra, Vernor Vinge escreveu A Fire Upon The Deep, uma fabulosa space opera que funciona como sequela de A Deepness in the Sky. Pham Nuwen, héroi e quase imperador interestelar de A Deepness in the Sky é em A Fire Upon The Deep um humano ressuscitado após milénios perdido no espaço, que funciona como agente de uma civilização avançada. Se o tema prevalente em A Deepness in the Sky é a ascensão e queda das sociedades, em A Fire Upon The Deep, o tema prevalente é a singularidade, conceito da FC que explora o colapso dos sistemas sob o peso da complexidade do seu desenvolvimento. É a ideia que está por detrás de muitas obras cyberpunk pós-apocalípticas, em que a sociedade tal como a conhecemos entrou em colapso. Enquanto a singularidade é normalmente entendida pelos escritores de Fc como um momento no tempo, Vernor Vinge escolheu outra percepção - a singularidade como uma forma de topolgia espacial. Em A Fire Upon The Deep, Vinge delimita o espaço galáctico naquilo que ele chama de zonas de pensamento. Quanto mais profunda a zona, menos possibilidades tem a vida inteligente de se desenvolver. Na zona apelidada de unthinking depths, perto do centro da galáxia, a inteligência, quer biológica quer artificial, é quase impossível. A zona seguinte, a slow zone (onde Vinge situa a nossa Terra) já permite algumas formas primitivas de inteligência e tecnologia. Os Qeng-ho e todo o universo de A Deepness in the Sky situa-se na slow zone. A zona conhecida como beyond já permite milagres tecnológicos como antigravidade ou viagens superlumínicas, e é habitada por complexas civilizações que formam uma intricada teia social. Finalmente, nos limites da galáxia situa-se a zona das trasncendências, the transcend, onde as civilizações que lá conseguem chegar não encontram limites à ciência e tecnologia e evoluem para lá do imaginário.

Sabendo isto, sabendo que Vinge criou A Deepness in the Sky neste seu universo, retira toda a esperança à obra, algo que John Clute apontou certeiramente na sua crítica. A complexidade e o cuidado na caracterização de A Deepness in the Sky faz-nos identificar com as personagens, com os seus sonhos e esperanças no futuro. Mas se analisarmos A Deepness in the Sky à luz do universo de Vinge, percebemos que fomos como cientistas a contemplar uma colónia de formigas - sem dúvida que as formigas estão num pico evolutivo, e se fossem sentientes certamente que julgariam a sua sociedade complexa como marco civilizacional. Mas quem está de fora sabe que contempla apenas um formigueiro. Em A Deepness in the Sky, Vinge coloca-nos dentro do formigueiro, mas a perspectiva é exterior. Na vastidão do universo, a humanidade e os seus sonhos são uma pedrada no charco. É uma ironia inesperada na FC, campo onde os sonhos se realizam, mesmo que só nas páginas das obras deste género literário.