segunda-feira, 16 de abril de 2007
A Choir of Ill Children
Tom Piccirilli, A Choir of Ill Children, Bantam Books, 2003
Tom Piccirilli
SF Site | A Choir of Ill Children
Big Fish, o apaixonante filme de Tim Burton às voltas com lendas familiares, contos improváveis, feitos estrondosos, estranhos indivíduos e cidadezinhas tradicionais perdidas nos pântanos do sul da américa do norte, foi uma boa introdução ao estilo conhecido como southern gothic. Misturando fantasia e realismo com mundos imaginários, mundos nostálgicos e personagens exóticas, o southern gothic mergulha fundo no mundo de tradições rurais do sul, nas raízes de uma terra ensopada pelos rios serpenteantes, onde as tradições resistem ao passar do tempo. Este estilo vai buscar às paisagens quase surreais do sul dos estados unidos a inspiração para a estranheza. Este é o mundo dos bayous, pântanos verdejantes onde a vegetação esconde estranhos mistérios, onde a àgua se intersecta com a terra e onde os espíritos se manifestam, onde as lendas ganham corpo e onde a triste realidade de pobreza e isolamento se transforma em exotismo indivualista. A grande raíz do género está na obra de William Faulkner, passada num condado imaginário do sul onde Faulkner conseguia reunir a magia das paisagens, os vícios da história e a intemporalidade dos modos de vida.
A Choir of Ill Children assume-se como um livro que faz uso de todos os elementos que caracterizam o southern gothic. O autor, que eu francamente até agora desconhecia, pega nos elementos e mistura-os com uma boa dose de maquiavelismo tenebroso, criando um mundo obscuro e decadente, oculto no meio dos pantanais, onde a vida não corre pelos caminhos habituais.
Tom é o principal personagem deste conto fantasmagórico. É o homem mais rico de Kingdom Come, cidade perdida no meio dos pântanos, e está constantemente a lutar contra a herança de pesadelos e segredos. Tom toma conta dos seus irmãos, trigémeos unidos que partilham a mesma cabeça, bizarria da natureza, e vai fugindo das conspirações das velhas bruxas da terra enquanto se deixa levar por uma maré de sonhos e estranhos acontecimentos que culminará num muito literal choque electrificante com o seu passado. Tom passa os dias a navegar por entre as bruxas que conjuram estranhos encantamentos para manterem as tempestades longe da cidade, tentando salvar o seu melhor amigo, o filho do pastor da igreja local que fala como se possuído pelos espíritos, tentando manter alguma dignidade a um detective que se auto-destroi enquanto investiga o aparecimento misterioso de uma sensual menina que acaba por revelar rugas por detrás dos vestidos infantis. No meio disto temos os momentos de paz de Tom enquanto faz pão para os monges da ordem dos Walendas Voadores, um grupo de homens e mulheres por vezes angustiados, por vezes enlouquecidos, por vezes alucinados, por vezes desesperados, que se reúne num hospital abandonado que faz as vezes de mosteiro. E não podemos esquecer o cameraman viciado em cocaína que filma um documentário sobre os trigémeos de Tom, que nos momentos mais alucinados chega mesmo a propor a realização de filmes pornográficos com a estranha criatura, da investigadora do documentário que se apaixona por uma das cabeças dos trigémeos, de um motoqueiro amante das artes da esgrima e de todo um coro de personagens bizarras que confluem no mundo esquecido da cidade do reino prometido.
Omnipresente é a paisagem opressiva do pântano, a sublinhar o facto da cidade, como o nome indica, ser literalmente um fim do mundo, um buraco negro que prende os homens à terra e que leva inevitávelmente ao falhanço aqueles que tentam mudar o que está arreigado no interior daquela terra - seja a paisagem, seja a mente de quem lá vive.
A Choir of Ill Children não é um livro excepcional, ou particularmente fascinante. Se reúne uma galeria de personagens, locais e situações bizarras quanto baste, por vezes a roçar o macabro e o inquietante, acaba por ser traído pela prosa do autor, muitas vezes pouco clara. A Choir of Ill Children torna-se mais um relato desconexo, com se de um sonho se tratasse, do que um romance de fio condutor visível, que o é, pois enterrado na prosa por vezes obscura está um fio condutor que leva à inevitável conclusão. A Choir of Ill Children fica no entremeio entre a clareza do romance e o poder onírico da literatura surreal, mas ao manter o pé nos dois campos acaba por se desiquilibrar. Não deixa de ser uma leitura interessante, mais pelo exotismo do género em que se enquadra e pela óbvia bizarria do que pelas suas qualidades literárias.
De qualquer forma, deixo aqui o meu conselho: este é um livro a ler acompanhado por um Southern Comfort, um líquido meio bourboun meio liquor que explode no palato com a potência do whisky e com o exotismo da menta. Talvez seja esse o segredo para se entrar no espírito deste coro doentio.