domingo, 4 de março de 2007

Mitos e Lendas



James Hayward, Mitos e Lendas da Segunda Guerra Mundial, A Esfera dos Livros, 2007
A Esfera dos Livros | Mitos e Lendas da Segunda Guerra Mundial

A Segunda Guerra Mundial é um período fascinante da recente história europeia. Foi o conflito cataclísmico que mudou a face da Europa e do mundo, foi o momento em que o poder americano se afirmou globalmente, foi uma guerra como até então nunca tinha havido - a guerra total, que só terminou com a destruição total dos adversários. Foi a guerra dos bombardeamentos massivos, dos campos de concentração, do Holocausto, da horrorosa frente russa. Foi a guerra que terminou com a Alemanha no seu ano zero - derrotada, amargurada, obrigada a encarar os seus crimes, com as suas cidades em ruínas e desmembrada pelas potências vitoriosas.

A Segunda Guerra Mundial é também uma guerra de ideologias, onde as forças da democracia venceram as do fascismo - pelo menos à primeira vista, porque a vitória americana e britânica nunca teria sido possível sem os enormes sacrifícios e a obstinação dos russos, governados por um regime que de democrático nada tinha. Mas a mística é inegável, a de uma luta titânica que aniquilou um mal puro, encarnado por Hitler e os seus sequazes, com os horrores das execuções sem sentido, com o momento negro da história da humanidade que foi o holocausto, com o inútil derramar de sangue nos campos dos Pirinéus aos Urais. A Segunda Guerra sobrevive no consciente colectivo de ideias como o momento dos selvagens soldados boches, dos sanguinários oficiais das SS, como a simpatia e o valor dos GI americanos, mitificada por uma Inglaterra que viu o seu poder desvanecer-se como a sua finest hour.

Este Mitos e Lendas da Segunda Guerra Mundial não se debruça sobre o dia a dia da guerra, sobre as suas tácticas e implicações geoestratégicas. Esta obra debruça-se antes sobre uma série de mitos que se desenvolveram à volta dos acontecimentos da Segunda Guerra, alguns já esquecidos, outros aos quais se dá uma importância desmesurada. É uma obra acessivel, cuja leitura, pejada de factos curiosos, nos agarra e deixa alguma vontade de perscrutar mais a fundo todo o ideário à volta da Segunda Guerra. No final, o livro até nos brinda com um excerto de um discurso de Patton, general americano retratado como maior do que si próprio no clássico filme homónimo.

Mitos e Lendas da Segunda Guerra Mundial centra-se em boatos, rumores e falsas verdades que circularam e ainda circulam sobre a Segunda Guerra. No livro encontramos análises a ideias aparentemente díspares, mas que se combinam numa teia de enganos sobre os reais acontecimentos. A noção de quinta coluna, constituída por cidadãos anónimos à prova de toda a suspeita que ao primeiro sinal do inimigo se revelam perigosos espiões capazes dos mais horrendos actos de sabotagem é muito sublinhada neste livro, talvez por o autor se compadecer do destino daqueles que acusados de serem espiões inimigos pela paranoia dos rumores foram executados sem apelo, inocentemente. O autor desmistifica a ideia da existência de quintas colunas, propagada pela propaganda da época (se se observar os comics da época depressa se nota que as aventuras dos heróis se prendem com o combate contra tenebrosos espiões infiltrados que se preparam para actos de sabotagem.

Outras pérolas deste livro envolvem o mito de soldados alemães que seriam lançados de pára-quedas sobre território inimigo disfarçados para se infiltrarem e sabotarem os esforços de defesa contra os inexoráveis avanços da Wermacht. Não é um rumor totalmente desprovido de verdade - a Wermacht dispunha da unidade Brandenburgo, especialista em camuflar-se com uniformes de tropas aliadas para levar a cabo acções de sabotagem, mas as suas acções não foram assim tantas como os rumores levam a crer. Para além disso, estas histórias tinham o pormenor surrealista de indicar que os soldados alemães se disfarçavam de freiras - não deixa de ser uma visão onírica, a visão de freiras de pernas peludas a caírem de pára-quedas sobre os campos de batalha...

Um mito muito divulgado prende-se com as cargas da cavalaria polaca contra as unidades de tanques Panzer, mito explorado num fabuloso filme polaco sobre os momentos desesperantes da invasão alemã, mas falso. A cavalaria polaca combatia como infantaria, e nenhum comandante seria idiota ao ponto de ordenar uma carga de cavalaria contra tanques e blindados - mas o mito prevaleceu, talvez como forma de sublinhar o heroísmo polaco contra a poderosa máquina de guerra alemã. Apesar disso, Hayward relata um caso em que uma unidade de cavalaria carregou a cavalo sobre tropas alemãs - no caso, tropas de infantaria.

Um dos casos clássicos de espionagem e acções maliciosas dos serviços secretos é o da operação Carne Picada - o clássico exemplo de desinformação, tido como um elemento fundamental da estratégia aliada. A operação consistiu no largar de um cadáver nas costas espanholas, agarrado a uma mala contendo documentos falsos que detalhavam os planos de guerra aliados. O mito indica-nos que esta acção foi decisiva para o esforço de guerra, mas este livro desmistifica esta operação como uma estratégia de ética questionável que não teve tanta importância como a que geralmente lhe é atribuída.

Quando se debruça sobre os nazis, o livro aproxima-se do bizarro. Os mitos sobre Hitler e os seus sequazes chegam aos limites do alucinante, desde a estranha deserção de Rudolf Hess, apontada como um plano secreto para estabelecer a paz e uma aliança entre britânicos e alemães, passando pelas inúmeras versões sobre a morte de Hitler (ainda hoje, assunto polémico), sem esquecer os rumores de que líderes nazis estariam ainda hoje vivos em diversos contextos - desde cidadãos anónimos em países simpáticos da américa do sul a bases militares no Brasil ou na Antártida, onde o sonho do terceiro reich continua vivo, as alegações da importância dada pelos nazis ao oculto e à astrologia (na realidade, nenhuma, mas isso não é obstáculo a inúmeros livros sobre o assunto). A tecnologia alemã também é levada ao exagero, com as histórias sobre os lendários foo fighters (a génese da moderna ufologia) e sobre os discos voadores alemães. Aqui o livro é reticente, o que é uma pena, pois os mitos acerca das máquinas voadoras alemãs, combinados com os submarinos e a antártida são fascinantes. Mas para isso basta fazerem uma pequena pesquisa com os termos german flying saucers, antarctica e nazi bases para verem até que ponto chegam os delírios.

E há mais, muito mais, nesta obra singular, factual e de grande interesse. Para curiosos sobre a segunda guerra, para estudiosos da eterna capacidade humana para se deixar mistificar por ideias bizarras, este livro é precioso.