IMDB | Night of the Marionettes
Supernatural
Frankenstein foi uma daquelas obras seminais, que exercem uma profunda influência na nossa psique. A história do cientista que se sente mais poderoso do que os deuses e que no seu laboratório gera monstros tem atravessado épocas, com variantes e diferentes encarnações, mas sempre com os elementos germinais presentes. O cinema e a televisão expandiram o campo de intervenção deste tipo de histórias. Qualquer filme sobre qualquer resultado de aturadas experiências científicas com consequências catastróficas para a humanidade, com cientistas mais ou menos convencidos do seu papel de deuses sobre a terra, tem na sua base a velha narrativa de Mary Shelley. Isto mesmo que os cientistas ficcionais não se dediquem a dominar a vida, se bem que a grande lição de Frankenstein é que o trabalho científico destina-se a desvendar os segredos da natureza, e assim dominá-la. O cientista, por humilde que seja, tem dentro de si aquela faísca que o faz trabalhar, superando-se ao comum dos mortais, colocando-se onde anteriormente se colocavam os deuses. Por vezes, os cientistas, com as suas batas brancas e a suas certezas em teorias incompreensíveis, parecem ser os zelotas da nova religião, os sacerdotes dos novos dogmas apoiados não em escritos incompreensíveis ditados por deuses caprichosos, mas nos segredos saídos das entranhas de estranhos aparelhos que comunicam com a profunda estrutura atómica do universo.
Recolhido no precioso The Frankenstein Omnibus, este The Workshop of Filthy Creation é da autoria de Robert Muller, argumentista de televisão inglês, que o escreveu para uma série clássica de terror/fantástico intitulada de Supernatural (não confundir com o mais recente e divertido Supernatural que passou na televisão portuguesa). A série utilizava um dos artifícios comuns à narração de horror - a do contar de uma história sobrenatural ao sabor de uma lareira. A série baseava-se nas narrações dos membros ou daqueles que queriam ser membros do The Club of the Damned.
The Workshop of Filthy Creation é o argumento de um episódio em que um escritor envelhecido narra aos membros do clube a sua estranha história, na esperança de ser aceite como membro do clube. Howard Lawrence é um escritor de biografias que a dado ponto da sua carreira se interessa pela vida de Byron e Shelley que decide seguir-lhe os passos, viajando pela Europa e passando pelos mesmos locais onde Byron e Shelley haviam passado. Esta viagem leva-o, acompanhado da mulher e da filha, à famosa Villa Diodati onde, reza a lenda literária, numa noite de tempestade o grupo de Shelley, Byron, Polidori, secretário de Shelley, e Mary, jovem amante de Shelley, se desafia a criar uma história aterradora, inspirados pela leitura de um livro de contos fantasmagóricos. Os resultados desse desafio são bem conhecidos - Polidori escreveu O Vampiro, referência histórica do género literário, e Mary Shelley legou-nos Frankenstein, or, The Modern Prometheus. Por entre oa arredores tenebrosos da Villa Diodati, Lawrence sofre um forte cansaço mental, que o leva a abrigar-se por uns dias numa vilória esquecida nas proximidades da Villa literária. Encontra-se assim na estranha estalagem de Gasthof Ritterhoff, única estalagem de uma aldeia perdida por entre a densa floresta entre as montanhas. Lawrence e a família são os únicos hóspedes, e depressa ficam acabrunhados pelo aspecto melancólico da estalagem e pela estranheza dos seus estalajadeiros, sempre simpáticos, mas com um ar estranho e inquietante. Entrentanto, a jovem filha de Lawrence, que partilha com o pai o gosto pelos mistérios da literatura, embrenha-se na leitura de Frankenstein, sentindo-se um pouco no papel de Mary Shelley, que havia escrito a obra naqueles locais e com a mesma idade, e perguntando-se o que é que precisamente havia inspirado Mary Shelley a escrever tão estranha obra. Aliás, pergunta-se mesmo se Mary não havia pernoitado nesta mesma estalagem antes de se abrigar na villa Diodati. A mãe vê com maus olhos esta inclinação da filha, mas inomináveis sentimentos aterradores conjugados com as delícias do vinho quente fazem-na cair numa espiral de alheamento. Durante as noites, Lawrence e a filha não conseguem dormir, graças a estranhos ruídos vindos das profundezas da estalagem.
A existência de uma estalagem num local tão remoto é justificado por um festival anual que faz vir à aldeia pessoas dos quatro cantos da Suíça - um espectáculo de marionetas muito especial, representado apenas uma vez por ano, e que se repete inalterado há mais de um século. E o festival aproxima-se...
Se a versão televisiva for tão interessante como as descrições de The Workshop of Filthy Creation, vale bem a pena vasculhar arquivos à sua procura. O argumento socorre-se de um pesado ambiente gótico, que exagera as trevas, o isolamento e a decadência. As personagens que o escritor e a sua família encontram na estranha estalagem têm o seu quê de aberrante e grotescto. O tom do argumento puxa ao grotesco, com inúmeras descrições tenebrosas do ambiente em que os personagens estão mergulhados. E a conclusão da história, embora não termine da pior maneira possível, termina de uma forma grotesca - o tal espectáculo de marionetas era representado por marionetas humanas, o resultado dos séculos de experiências do homem que inspirou a Mary Shelley o personagem de Dr. Frankenstein, ainda vivo graças à sua ciência maldita, grotesco e decrépito enquanto prossegue as investigações no seu tenebroso laboratório. Mas tranquilizem-se; os estalajadeiros, marionetes de carne construídas pelo mestre das marionetas, não tencionam utilizar o escritor e a sua família como peças sobresselentes. No dia seguinte à representação, Lawrence e a sua família partem em paz, em direcção ao mundo moderno, embebidos no entanto pela loucura daquele lugar insano e dos seus grotescos habitantes.
No final do episódio a narrativa de Lawrence é considerada demasiado fantasiosa para ser autêntica, não lhe sendo concedida admissão no restrito clube de investigadores do sobrenatural.
The Workshop of Filthy Creation não serve para ser lida em busca de subtextos ou sentidos obscuros. Ântes pelo contrário, o conto/argumento torna-se interessante pelo uso sublime dos estereotipos da ficção de horror, sendo uma interessantíssima variação do mito do homem cuja ciência o leva a querer sobrepôr-se a deus. Na série televisiva, o argumento surgiu com o menos sugestivo mas mais mediático título de Night of the Marionettes.