segunda-feira, 22 de janeiro de 2007
Contos Nocturnos
E.T.A. Hoffmann | Nachtstücke
Wikipedia | E.T.A. Hoffmann
E.T.A. Hoffmann, Contos Nocturnos, Guimarães Editores, 2005
Durante os seus quarenta e seis anos de vida, E.T.A. Hoffmann (1776-1822) foi um polimata das artes, tão à vontade nas letras como na crítica como na composição musical. Recordamo-lo pelos seus contos, um dos quais está na génese directa do bailado O Quebra-Nozes com música composta por Tchaikovsky, e pela sua importância como uma das figuras maiores do romantismo.
Surgido nos primeiros anos do século XIX, o movimento romântico unificava escritores, pintores e músicos na busca dos ideiais exaltados da alma. Se uma palavra há que possa definir o estilismo romântico é a intensidade, uma intensidade de palavra, de cor e de sonoridade que só encontrou paralelo no século XX com o movimento expressionista. A intensidade romântica, a sua exaltação de valores, ideais e sentimentos pode ser plenamente apreciada observando a pintura de Gericault ou Delacroix, cuja icónica imagem da liberdade ainda hoje nos assombra (aquele quadro das ruas de Paris em chamas, com homens, mulheres e crianças do povo em armas seguindo uma mulher de busto descoberto que empunha numa das mãos a altaneira bandeira da república francesa e noutra a baioneta, carregando sobre as invisíveis forças opressoras). Ouvir Beethoven é uma experiência que nos excita os sentidos, precisamente a intenção deste mais romântico dos compositores, e se a audição acompanhar uma leitura do Werther de Goethe, aí pressente-se a plenitude do idealismo romântico. Werther, romance de amores, foi no seu tempo uma obra polémica. Dizia-se que a sua leitura inspirava na juventude da época a loucura e o suicídio, a exemplo do Wether homónimo da obra, que se suicida num turbilhão de sentimentos sobre uma mulher inatingível. No fundo, cada época busca na sua cultura contemporânea produtos culturais que envenenam a mente da juventude. É-nos difícil imaginar uma personagem como Goethe como um corruptor de juventude, embora tenhamos a mesma reacção perante, por exemplo, certos jogos de computador ou géneros musicais.
O início do século XIX prestava-se especialmente à exaltação de sentimentos. O século XIX foi o século que transformou a humanidade. Foi o século das invasões francesas, que espalharam pela europa os ideiais republicanos e democráticos; foi o século em que a herança cultural e científica do iluminismo ganhou a força da revolução industrial. O século XIX foi o século do conflito entre poderosas forças que modelaram, na forja do campo de batalha, da revolução, dos fogos da indústria e das linhas de caminhos de ferro. Os passos evolutivos da sociedade europeia e, por extensão, mundial, foram decisivamente dados durante o século XIX. Até esta época, as revoluções culturais, económicas e científicas eram coisa de élites informadas, com as grandes massas humanas a viverem a mesma vida que viveram durante séculos, um campesinato rural analfabeto que mal saía dos confins da sua aldeia. As poderosas transformações dos ideiais republicanos e dos fogos da indústria vieram mudar tudo. Não surpreende por isso que as artes da época tenham espelhado a pujança idealista e violenta do século XIX.
Note-se que falo aqui de romantismo enquanto corrente artística e literária, não de romantismo enquanto ideário cor-de-rosa de telenovela barata ou filme lamechas (ou até mesmo literatura light). Não deixa de ser surpreendente observar como ao longo dos séculos as palavras vão mudando de sentido. Mas acreditem-me: os mais rosados voos amorosos em tom de pôr-do-sol dos romantismos de hoje empalidecem perante o paroxismo de emoções e ideiais da época romântica.
Os escritores românticos, especialmente os alemães do movimento Sturm und Drang, cedo se viraram para o sobrenatural como fonte de inspiração. É nesta época que o conto de fantasmas ou a história macabra ganham popularidade como forma de excitar os sentimentos - um bom conto sobrenatural provoca arrepios e sustos. É na literatura romântica que se encontram as raízes do horror como género literário.
E.T.A. Hoffmann partilhava do gosto contemporâneo pelo estranho e pelo macabro. Os Contos Nocturnos são uma obra que reúne seis dos seus mais tenebrosos contos. No primeiro deles, O Homem de Areia, Hoffmann transporta-nos da infância à juventude de um jovem que ao apaixonar-se pela filha do seu professor mergulha na loucura, especialmente depois de descobrir que o homem de areia, ser abjecto dos seus tempos de infância, foi o construtor dos olhos da mulher amada, afinal um autómato inteligentemente construído. No conto A Igreja dos Jesuítas, um viajante curioso maravilha-se com a arte de um artista que trabalha na decoração da igreja de uma pequena cidade alemã. Ao descobrir a história da vida do pintor, descobre as consequências de um amor destrutivo que combinado com um espantoso e promissor talento conduz o artista à amargura, dissolvendo o seu grande talento na mágoa.
O Sanctus incia-se como uma amigável conversa entre músicos e médicos amantes da voz celestial de uma cantora afectada por uma estranha doença que a impede de fazer ouvir a sua voz cristalina. Mais uma vez, há uma história de maldição por detrás da doença que corrompe a voz da cantora, imiscuída com velhas lendas dos tempos em que as cidades mouriscas caíam debaixo das espadas castelhanas. A Casa Deserta é uma história triste de locura que roça o macabro, quando um idoso cavalheiro conta aos amigos uma das suas aventuras de juventude, envolvendo os estranhos habitantes de uma velha casa arruinada. O conto O Voto sublinha particularmente os sentimentos românticos. Prende-se com a história por detrás de uma jovem de rosto coberto com um véu que se refugia numa estalagem para ter um filho. A origem da criança mergulha-nos nos tempos turbulentos da independência polaca, com uma história de amor e determinação que se confunde com outro amor; o melhor amigo do amado e a jovem apaixonada acabam por gerar um filho, mas a jovem enlouquece, acreditando ser o seu filho o fruto do casamento com o seu amado, que lhe surgiu em sonhos antes de morrer no campo de batalha. Este é um conto complexo, que mistura uma série de sentimentos fortes, para a época. Entre os maus olhares e a vergonha de uma gravidez fora do sagrado casamento misturam-se os valores patrióticos, a luta por causas perdidas e a loucura causada pelos desgostos de amor.
No conto O Coração de Pedra, durante uma festa em que se revivem os brilhos e o viço da juventude na época barroca, um cavalheiro idoso confronta-se com as amarguras familiares do passado, acabando por se reconciliar com o filho dedicado do seu irmão falecido, com o qual sempre havia estado desavindo.
Mais do que contos sobrenaturais, estes Contos Nocturnos são contos super-naturais, em que as emoções são exploradas até ao exagero e onde os sentimentos estão sempre exaltados. Os idealismos são alvo de profundas discussões, com uma forte preocupação em sublinhar os aspectos autênticamente românticos sobre a superficial descrição de emoções exaltadas. Oscilando entre o macabro, o estranho, o idealista e o revivalismo nostáligico de eras passadas onde a verdade era tida como um absoluto, os Contos Nocturnos são uma obra de referência que nos ajuda a compreender a evolução do gosto pelas trevas e pelo lado negro espelhado na literatura.