quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

A Sombra sobre Lisboa



A Sombra Sobre Lisboa, edições Saída de Emergência, 2006
Saída de Emergência | A Sombra Sobre Lisboa

Nos últimos tempos tem-se assistido a uma verdadeira explosão no interesse pela obra de H. P. Lovecraft nas terras lusas. As traduções sucedem-se, assim como as publicações. Se a leitura em Portugal da obra de Lovecraft durante anos era domínio de paperbacks importados, agora encontram-se nas livrarias boas edições, bem traduzidas, que desvendam ao grande público português as intricacias da literatura lovecraftiana pelas mãos dos editores da Saída de Emergência. E se o grande público não se dá conta disso, enfim, é ele que perde.

Outro sintoma da epidemia lovecraftiana é este A Sombra sobre Lisboa. O desafio, editado por Luís Corte Real, é intrigante: criar contos que girem à volta das temáticas lovecraftianas mas onde o cenário da Nova Inglaterra tenebrosa que Lovecraft tanto amava (e que Stephen King, de forma um pouco diferente, revisita) fosse substituído por Lisboa. Cthulhu entre as sete colinas, rituais de invocação dos grandes anciães à beira-tejo, a inagualável luz amarelada do pôr-do-sol lisboeta a banhar os ídolos obscenos e inomináveis de pedra corroída por incontáveis eões entranhados do musgo do tempo pertencentes aos cultos abomináveis daqueles que adoram o senhor do caos e o cego e louco sultão que dança ao som de pífaros fendidos para lá do tempo.

Catorze autores responderam ao desafio, e o resultado final é altamente recomendável. Em primeiro lugar, a edição cuidada, de grafismo apelativo que é marca da editora, logo atrai. Depois, a edição cuidada de Luís Corte Real permitiu dar à obra um carácter épico. Em vez de um conjunto desconexo de contos, A Sombra sobre Lisboa orienta-se de acordo com princípios cronológicos. Quase me atreveria a escrever que se orienta por uma lógica de mitos lusitanos de Cthulhu... mas isto seria, talvez, levar um pouco longe demais as analogias.

A abertura faz-se com o tom pomposo do conto de Rogério Ribeiro, O Primogénito, que estabelece o conceito do livro. Numa Lisboa ainda Fenícia, os deuses clássicos degladiam-se com a ameaça dos velhos deuses de além espaço e a cidade torna-se na arena onde os poderes da terra confrontam os poderes do além espaço e tempo. Em Vale de Sombras, Safaa Dib leva-nos à Lisboa visigótica, onde nas entranhas do catolicismo se adoram deuses obscenos cujos crentes tentam fazer regressar ao mundo. Só dois homens de ciência, um frade e outro desencantado com as hipocrisias da igreja, conseguem travar o ressurgir do grande mal, com a ajuda de agentes mouros infitrados.

Naquele que é a obra de maior fôlego contida neste livro, Luís Filipe Silva faz-nos viajar entre a Lisboa Manuelina, o périplo de circum-navegação do mundo por Fernão de Magalhães e o início da primeira guerra mundial num conto onde o tempo se dissolve na busca do livro maldito, o inominável Necronomicon. D. Manuel e os seus frades que enlouquecem traduzindo as páginas do livro, Fernão de Magalhães que busca a antiga R'lyeh através de mares nunca dantes navegados, e Arthur Machen, que acompanha um jovem Lovecraft e Percival Lowell aos campos de batalha da Bélgica onde um enorme segredo se esconde, formam o triângulo em que assenta este conto que, na práctica, é um livro dentro de um livro. Há neste conto muita referência, muito name-dropping, aliado a um sólido conhecimento do portugal manuelino e das vicissitudes das viagens de Magalhães. O toque brilhante de concluir o conto nos campos de batalha da Flandres ressoa com ecos do Corpo Expedicionário Português, com Herbert West: Reanimator de Lovecraft, em que parte do conto se passa precisamente na Flandres, com The Angel of Mons de Arthur Machen, ele também um mentor de Lovecraft. Num pormenor curioso, T.E. Lawrence surge como personagem num encontro prévio de Machen com os demónios de Cthulhu. Aquele que Repousa na Eternidade é uma leitura apaixonante, e que não perderia nada com uma nova publicação onde fossem dadas asas às inúmeras sugestões que perpassam na obra.

Na Lisboa barroca dos autos-da-fé, João Henrique Pinto dissolve as barreiras do tempo em Um Dia no Cárcere. A Lisboa Pombalina é visitada pelo olhar escatológico de David Soares. No conto O Cavalo e o Elefante, somos apresentados à magia indiana de um sacerdote de Ganesh que se conjuga com o arquitecto Manuel da Maia para refazer Lisboa à imagem de R'lyeh, nas vésperas do fatídico terremoto que arrasou a cidade. No cenário cataclísmico de uma Lisboa em ruínas, o livro proibido chega às mãos de um antepassado de Randolph Carter, que presumívelmente o teria feito chegar à américa, dando origem à mitologia lovecraftiana. Um derrotado e desiludido Manuel da Maia vinga-se do falhanço em remodelar Lisboa à imagem de R'lyeh colocando um elefante e um cavalo na estátua equestre de D. José I, extante na Praça do Comércio.

João Seixas apresenta-nos em As Sombras Sobre Lisboa a... Eça de Queiroz, agente dos serviços secretos da Coroa, que combate os inomináveis cultos assassinos que pululam na noite lisboeta, e mergulha com Fradique Mendes no combate a uma tentativa apocalíptica de despertar Cthulhu, apenas para falhar perante a conspiração de Luis Waddington, comissário de polícia apostado em capturar a essência do mal de Cthulhu. Ficam para conhecer as outras aventuras deste espião à portuguesa, tutelado por um M de... director dos Serviços Secretos criados pelo Marquês de Pombal. Em A Dama do Espelho Negro, o veterano António de Macedo leva-nos elegantemente à sociedade refinada da Lisboa de fim de século, e a certos acontecimentos segredados que se levados a bom sucesso trariam consigo um novo advento dos deuses antigos e ao renascer do espírito maligno de Joseph Curwen, reencarnado num nobre português após a sua morte em circunstâncias misteriosas na Boston do princípio do século XIX. Na Lisboa da II Guerra, exameada de espiões de simpatias variadas, um académico inglês julga participar no esfoço de guerra britânico ao traduzir um estranho tomo, apenas para se descobrir uma marionete às mãos de portugueses que planeiam fazer ressurgir Cthulhu... para o degustarem com ingrediente da maior tachada de arroz de polvo jamais feita. Rhys Hughes, neste conto intitulado Arroz de Abominação, recorda-nos que Cthulhu é essencialmente um tenebroso cefalópode.

Na Lisboa dos anos cinquenta, José Manuel Lopes conta-nos As Confissões de Walter Reis, descendente daquele povo híbrido que infesta Innsmouth e que atinge a imortalidade no fundo dos oceanos, à imagem do peixe-homem Dagon. Em Mastodon, Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell e amante confessado de tudo o que é lovecraftiano prepara o apocalipse de Cthulhu por entre as àguas do Tejo. Yves Robert revisita no conto A Ameaça Rastejante os traumas da guerra colonial e a loucura daqueles que cruzam o seu caminho com os desígnios inomináveis daqueles que servem as trevas de além-espaço. Em A Hora, Vasco Curado antevê as trevas que se abatem sobre uma Lisboa debaixo das sombras antediluvianas. No conto Num Túnel em Lisboa, João Ventura traz-nos a uma Lisboa contemporânea onde uma estranha descoberta nas obras do metro do terreiro do paço provoca o despertar dos poderes que dormem nas trevas. Incapazes de travar o mal que vem das trevas, as forças da polícia de intervenção sucumbem perante uma multidão ululante neste divertido conto.

A Sombra sobre Lisboa termina de forma magistral com o conto Por Detrás da Luz. João Barreiros leva com a sua forma implacável ao seu domínio de eleição - a Ficção Científica - o saber lovecraftiano. A Lisboa futura atomizou-se sobre as ogivas atómicas de uma NATO que tentou travar a abertura do portal que traria ao nosso mundo as legiões de loucura dos seguidores dos deuses antigos, prontos a reestabelecer o seu domínio sobre o planeta. Um encantamento destas entidades mergulha Lisboa numa singularidade em que o momento da explosão se repete ininterruptamente. O ciclo sem fim é interrompido quando as obsessões de Carlos, um caçador de artefactos que mergulha na singularidade lisboeta para resgatar artefactos do passado, são exploradas pelos seres que estão para além do tempo. Assim termina o livro, num apocalipse iniciado em Lisboa e que depressa estende o domínio dos Antigos ao nosso mundo.

Divertido e fascinante, esta antologia de contos lovecraftianos é uma das mais interessantes obras por enquanto nos escaparates das livrarias. É uma delícia ler aquilo que os escritores portugueses que teimam em escrever boa ficção científica, horror e fantasia foram capazes de congeminar com os ingredientes inimitáveis da obra de H. P. Lovecraft. Chegado ao fim, o livro... soube a pouco.