O dia de ontem foi passado numa profunda orgia consumista. Com o dinheiro fresquinho do subsídio de férias a fazer estranhar a conta bancária e com a antecipação dos dias agitados que antecedem o natal, convergi diligentemente até uma das catedrais do consumo e levei de enxurrada as minhas compras de natal. Despachei assim a compra de todas as prendas. Bem, de quase todas. Uma das coisas que não cessa de me surpreender neste nosso admirável mundo cheio de escolhas é a forma como não conseguimos decidir quando confrontados com tantas e tão coloridas opções que enchem as muitas montras das catedrais comerciais. Há sempre uma ou duas que ficam de foram.
Isto significa, para alguns dos leitores deste blog que têm o privilégio de me conhecer na vida real e que de quando em vez até tomam um cházinho - preto, claro - ou uma cervejinha comigo, que vão receber mais alguma tralha para encher ainda mais as casas. Excepto numa excepção, que eu creio já ter idade suficiente para ficar a ouvir Miles Davis. Mas não se apoquentem. As dimensões das tralhas são pequenas, pois estamos em ano de crise, não cometi a veleidade de vos sobrecarregar com livros que já sei que não vão ler ou com discos que vos deixam a indagar sobre se aquilo que estão a ouvir é mesmo música. São meras lembranças para comemorar o facto de termos aguentado mais um ano a aturarmo-nos uns aos outros.
Um passeio por um qualquer centro comercial presta-se a algumas curiosas observações, e ainda mais em época de orgias consumistas ostensivamente disfarçadas sob uma qualquer desculpa de comemoração. A primeira grande observação que me atingiu, quando ajoujado de sacos repousava os meus doridos ossos entre verdadeiras vagas do oceano de gente que circulava pelos corredores, é a de até que ponto as compras se tornaram a grande actividade de cultura e lazer. Chegados ao fim de semana, após uma longa semana de trabalhos e dores de cabeça, qual é o destino típico das famílias? A praia, o museu, o passeio por paisagens desconhecidas ou nem por isso, ou a obrigatória peregrinação ao centro comercial? ao fim de semana os espaços comerciais enchem-se de verdadeiros clãs que se arrastam de loja em loja, vagueando como zombies sob as luzes brilhantes da superfície comercial (uma metáfora descaradamente roubada a George Romero). A felicidade é atingida após horas passadas a deambular entre lojas e a vasculhar objectos. As pessoas vestem-se com a versão moderna do fato domingueiro e arrastam-se sob os sons alegres e o ar condicionado asfixiante.
Cá por mim nem sequer me dei ao trabalho de fazer a barba, o que suscita sempre olhares incomodados em certas lojas de aspecto mais presunçoso.
Um pormenor inquietante foi a grande quantidade de pares de mulheres que vi. Á primeira vista não parece algo inquietante (não me atirem pedras por sexismo, por favor, nem esta frase pretende ser um comentário anti-gay). O que me inquietou nesses pares femininos foi o serem constituídas por mãe e filha, e por estas serem virtualmente indistinguíveis, excepto talvez por uma rugazinha aqui ou um olhar mais cansado ali. É inquietante observar como estamos cada vez mais submissos aos padrões estéticos. Ao ver as mães que se vestiam tal como as suas filhas adolescentes, tentado capturar um pouco da juventude que sentem a escorrer pelos dedos, e ao ver as filhas adolescentes a tentar parecer mais velhas, mais adultas, mais mulheres, pensei em como nada nunca muda. As meninas sempre se quiseram parecer com mulheres, e as mulheres sempre se quiseram ver como meninas, especialmente depois de detectarem a primeira ruga ou o primeiro alvo cabelo. Mas hoje em dia, sob pressão dos media, dos interesses económicos e da omnipresente moda, esta tendência transformou-se numa epidemia. O que é que aconteceu ao envelhecer graciosamente?
Uma vez que os meus estimados amigos andam todos a aumentar o seu agregado familiar, achei que esta era uma boa altura para frequentar lojas de brinquedos. Entrei, e deslumbrei-me. Há coisas que nunca mudam.
Os velhos estereótipos dos carros para os meninos e as bonecas para as meninas continuam bem vivos, com inúmeras variações submetidas as horas de cad. Mas alguns estereótipos ainda são reforçados, como constatei pelo número assustador de cozinhas completas com serviços de pratos, talheres, fornos e até o moderno exaustor onde uma fotografia de uma alegre menina aprende sorridente a fazer o jantar ao futuro marido. Pasmei quando vi um aspiradorzinho de brincar com o logotipo de uma conhecida marca de aspiradores - um objecto que por si só se presta a autênticas teses de doutoramento sobre estereótipos, logotipos e o poder das marcas. O brinquedo mais assustador que vi para meninas foi um kit de cabeleireira - completo com pentes, dicas de maquilhagem e uns tenebrosos bustos estranhamente semelhantes às cabeças de animais empalhadas que se encontram nos pavilhões de caça.
Para rapazes a coisa não é muito diferente. Encontrei muito poucos brinquedos que não fossem violentos. O jogo violento é uma catarse, eu sei, mas não deixa de ser inquietante olhar para uma prateleira de brinquedos e ver helicópteros de combate ao lado de soldados rastejantes e de conjuntos de carros de combate. Em infinitas variantes.
Não pude deixar de observar a quantidade massiva de brinquedos que estavam associados a conteúdos televisivos. O marketing para crianças é uma máquina bem oleada e eficiente, que revela toda a sua pujança nestas alturas do ano. Para grande pena daqueles de nós que ainda acreditam que tudo não tem de ser resumido ao seu valor comercial.
A palavra inquietante já foi utilizada muitas vezes neste pequeno texto, e eu não resisto a utilizá-la mais uma vez. Sei que estou imperdoávelmente a violar as regras de estilo literário, mas confiem em mim. Tem mesmo de ser assim. Na loja de brinquedos que visitei, e de onde saí com uma surpresa que espero que muito alegre os papás e a filhinha (oops, já estou a dizer demais) encontrei algo de inimaginável: bonecas com um metro e dez centímetros de altura. Pasmei. As bonecas eram mais altas do que a altura média das crianças, vestidas e maquilhadas com o estilo jovem da moda - mini-saia e top justinho. Como não consigo conceber uma criança a brincar com uma boneca que é da sua altura (talvez num caso psicótico de isolamento extremo), pergunto-me quem é que compra aquelas bonecas de um metro e meio. Papás dispostos a provar o seu amor pelas filhas através do tamanho das prendas, ou pedófilos subreptícios que levam para casa um boneco de tamanho quase real? Terei terminado este post com uma piada de mau gosto, de humor muito negro, ou com um pensamento arrepiante?