segunda-feira, 6 de novembro de 2006
O Gato Preto
Comic Creator | Horacio Lalia
Altre anatomie argentine: i dimenticati
Edições ASA | O Gato Preto
O Gato Preto, ilustrado por Horacio Lalia, Edições ASA, 2002
O bom bibliófilo conhece bem o seu vício. O bom bibliófilo sabe perfeitamente que as melhores pérolas se encontram esquecidas no fundo das caixas e no topo das prateleiras poeirentas. O bom bibliófilo percorre diligentemente as livrarias em busca das novidades e dos seus autores favoritos, mas não consegue resistir às pechinchas, às caixas ou prateleiras cheias de livros esquecidos e empoeirados, edições antigas ou obras ignoradas que se vão encontrando por aí nas feiras de livros ou nas promoções de supermercado. O bom bibliófilo sabe o que o espera: momentos deliciosos a manusear livros sem qualquer interesse. Um profundo vasculhar entre papel amarelecido que, após portentosa luta, cede o lugar à descoberta de pequenas pérolas. É entre o cheiro a poeira dos livros em processo de alfarrábio que qualquer bom bibliófilo encontra por acaso as mais queridas pérolas da sua biblioteca. Sei bem o que digo; é ao vasculhar estes livros esquecidos, de preços convidativos para que os vendedores se livrem daquela tralha, que encontro preciosidades que de outra forma nunca encontrariam o seu lugar nas prateleiras da minha biblioteca.
Quando este O Gato Preto chegou às livrarias, provávelmente nem dei por ele. Anos depois, numa qualquer prateleira de um supermercado perto de mim, entre novelizações dos morangos açucarados e o material escolar, encontrei uma daquelas promoções destinadas a limpar armazéns. E entre o tédio de publicações muitas vezes justamente esquecidas encontrei esta preciosidade.
Diga-se de passagem que nunca é demais relembrar Edgar Allan Poe. É um autor incontornável, e indispensável na biblioteca de qualquer amante das literaturas mais obscuras. Encontrar uma obra em banda desenhada, formato europeu, a prometer um dos mais atrozes contos de Poe (atroz, não por ser um mau conto mas pela visão da negra alma humana que revela) é imaginar, mesmo antes de abrir a capa, com delírios gráficos a fazer inveja a um Dave McKean. Neste caso, o abrir do livro e o folhear das páginas deixaram-me estupefacto. A ilustração precisa de alguns dos mais fascinantes contos de Poe não era delirante. Era algo muito mais precioso, pelo menos para mim.
Os leitores mais atentos deste blog já se devem ter apercebido da minha atracção estranha pelo pulp nas suas vertentes de FC e Horror. Confesso-me absolutamente fascinado pelos filmes de série B, com a consciência plena de que são maus filmes, mas sem dúvida fascinantes. Vincent Price é uma das minhas referências, e adoro dar acolher visitas em minha casa com um i bid you welcome nos meus lábios (Bela Lugosi em Drácula, 1931). Lovecraft é um amor, Clark Ashton Smith um vício. E a minha extensa cultura visual esfuma-se sempre que deparo com ilustrações para comics pulp dos anos 50 e 60. As bandas desenhadas no estilo Tales From the Crypt são, apesar das grandes variâncias de qualidade, uma referência.
O estilo muito próprio e tenebroso dos comics de horror pulp é fascinante. Por razões económicas, estes comics tinham de ser baratos, o que inviabilizava a sua publicação a cores. Graças a isso, os autores, desenhadores-tarefeiros contratados em locais inesperados, numa espécie de globalização económica que já acontecia antes da grande globalização da nossa era contemporânea, foram forçados a desenvolver um atraente estilo realista e tenebroso, de moldes clássicos e a apostar em fortes contrastes de preto e branco. Sempre em busca de novas sensações, estes artistas apostavam em trabalhos dinâmicos e violentos, que no seu melhor captavam profundamente a essência do fascínio do horror. Se o gore da cinematografia de terror mais profunda encanta, estes comics já desbravavam este terreno sangrento antes do cinema lá ter chegado.
Décadas passadas, estes comics já estão extintos, superados pelo mercado mas adorados por uma legião de irredutíveis fãs . As reedições e as antologias rareiam, e as edições originais sobrevivem apenas graças aos esforços pouco legais de fãs dedicados que digitalizam estes comics e os disponibilizam online. Sigo regularmente alguns blogs, como o Datajunkie ou o Groovy Age of Horror, que se dedicam a dissecar mais profundamente esta época dourada do horror em comics e livros. Compreendem agora a preciosidade de uma obra como O Gato Preto?
Este livro, que reúne adaptações de contos tenebrosos do grande avô do horror, não é estritamente retirado de comics de horror vintage. Antes, a ligação aparece no seu autor, até agora para mim um perfeito desconhecido. Horacio Lalia é um argentino já com uma longa carreira, colaborador da Fleetway inglesa (que publica, entre outros títulos, o ainda referência 2000 AD) e de editores de fumetti italianos. O seu estilo é o típico estilo pulp, com planos desconcertantes, uma atenção desmesurada a pormenores, um atordoante uso dos contrastes de preto e branco e uma capacidade invejável para representar o tétrico a traços de tinta da china. O Gato Preto não reedita velhos contos de comics já desaparecidos. É antes uma homenagem à obra de Poe, pela mão de um autor que passou décadas a desenhar pesadelos para o mercado europeu. As competentes adaptações recordam contos como o Manuscrito Encontrado numa Garrafa, O Enterro Prematuro, o famosíssimo O Barril de Amontillado ou O Gato Preto que lhe dá o título. A adaptação da obra literária foi feita com um especial cuidado e grande respeito pelas histórias origiais, coisa rara neste género de obras.
Em suma, bibliófilos, amantes do pulp, fãs das trevas ou simples curiosos em busca de uma boa leitura, dediquem-se ao vasculhar. E se encontrarem esta obra de banda desenhada, dêem-lhe um lugar merecido na vossa biblioteca.
(Mais uma dica: se visitarem o blog Datajunkie, podem encontrar regularmente para download pdfs de publicações esquecidas da era de ouro do horror como a Psycho, Ghost Manor, Nightmare Tales ou Tales of Terror. Pouco legal, é certo, mas sem alternativas. E se quere saber o que é que os argentinos andavam a ler enquanto os seus ilustradores criavam obras para o mercado europeu, leiam o Arboles Muertos e Mucha Tinta. É especializado em fotonovelas de horror pulp. Fotonovelas, leram bem.)
(Por vezes deixo as coisas meio ditas. A tal "globalização" dos anos sessenta prende-se com a quantidade de artistas iberoamericanos que trabalhavam a ilustrar comics italianos, britânicos e americanos. As editoras adoravam-nos, pois traziam consigo estilos distintos e preços mais baixos do que os artisas locais. Como exemplo extremo temos o famoso personagem da bd britânica, Judge Dredd - criado pelo inglês John Wagner em parceria com o espanhol Carlos Ezquerra.)