segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Prata Viva



Quicksilver, Neal Stephenson, HarperTorch, 2006

Neal Stephenson
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Das raízes heréticas do renascimento surgiu o iluminismo, o espírito de ideias que alterou profundamente a nossa forma de viver o mundo. A curiosidade e a busca do conhecimento sobre o mecanismo do mundo iniciado pelos grandes espíritos renascentistas atingiu massa crítica nesse momento histórico, e daí nasceu o nosso mundo contemporâneo, secular e baseado no progresso científico e tecnológico.

O trabalho do escritor Neal Stephenson tem sido caracterizado por assumir uma direcção no sentido da meta-ficção: Neal Stephenson continua a ser um escritor de ficção científica com forte pendor cyberpunk, mas os seus romances deixaram de ser histórias futuristas para passarem a ser reflexões sobre a história das ideias que propiciou a nossa moderna sociedade tecnológica, em que cada vez mais nos definimos pelo virtual. O virtual, o cyber, a "segunda vida", parafraseando o jogo/mundo virtual de mesmo nome, está na moda, estimula os nossos sentidos, excita as ideias, e tornou-se a obsessão da sociedade contemporânea. Isto não é nada por aí além - cada época, cada contemporaniedade teve as suas obsessões. É nestes porquês, na forma como a esturuta das ideias se desfia e evolui ao longo dos tempos, que Neal Stephenson encontrou o seu campo de actuação, diria mesmo a sua musa inspiradora.

Esta tendência do autor de Snow Crash e Islands in the Net, de um dos autores que nos deu a noção de espaço virtual e que inspirou directamente o conceito de mundo virtual agora tão em voga entre os jogadores, começou a notar-se com o monumental Mother Earth, Mother Board. Neste seminal artigo publicado na Wired, Neal Stephenson vai observar in loco a grande ligação do mundo, a instalação de cabos submarinos e a estrutura física da internet numa escala global. O romance Cryptonomicon, escrito no auge da grande celeuma cypherpunk, em que simples linhas de código eram consideradas armas e o programa PGP era demonizado a uma escala capaz de fazer inveja às editoras que demonizam a partilha de ficheiros, foi beber à recente história da criptografia para perceber como esta está na génese do nosso mundo informatizado. E no meio de aturadas reflexões sobre algoritmos criptográficos e o impacto do secretismo na economia global, Stephenson criou uma história fabulosa às voltas com tesouros, Bletchley Park, redes submarinas, economias obscuras, cultura niponica e, claro, algoritmos de encriptação. Mas Cryptonomicon era um livro fechado, que nos desperta grandes ideias, e as conclui nas suas páginas.

O problema de Quicksilver é que faz parte de um grande arco, uma obra magna que Stephenson se propôs escrever, sob o nome de Ciclo Barroco. O conjunto de livros que este ciclo encerra já ultrapassou largamente a trilogia, o que não surpreende - Stephenson propôs-se escrever nada menos do que uma história do sistema do mundo, centrado na era Barroca, quando o iluminismo e o mercantilismo começaram a demolir a velha sociedade pós-renascentista, alicerçada no mundo medieval, trazendo o mundo para a era moderna. Stephenson mergulha entre as elocubrações dos filósofos naturais que perscrutam o mundo, sedentos de curiosidade, entre as manigâncias dos jogos de poder das nobrezas políticas e entre os sonhos de uma classe emergente que apoia o seu poder e afluência não na tradição mas sim na troca de mercadorias e gestão de dinheiros. O Ciclo Barroco pretende ser uma história das ideias que formam a base da nossa sociedade contemporânea, e na sua minuciosa busca de interrelações num mundo que já era global antes da era da globalização Stephenson largou o ser conciso no meio das urtigas e foi escrevendo até chegar à conclusão, o que explica a amplitude deste ciclo de livros dos quais Quicksilver é o primeiro.

Quicksilver recupera as personagens-chave de Cryptonomicon como avós das personagens modernas. O elusivo Enoch Root faz uma aparição como propiciador da educação de uma criança desfavorecida, que se irá tornar Isaac Newton, e Daniel Waterhouse transmuta-se no filho de um puritano ferrenho. Quicksilver passa-se nos primeiros anos da Royal Society, quando ela era pouco mais do que um gabinete de curiosidades onde Hooke, Newton e as restantes luminárias que são, efectivamente, os pais da ciência moderna iluminavam a natureza, tentando decifrar os seus segredos. Waterhouse é neste livro um quase grande cientista, que só não o é porque era contemporâneo de Hooke, Newton e Leibniz - e entre gigantes, o mais alto de entre os homens será sempre anão. Daniel é o filho de um ferrenho puritano numa época em que o professar de diferentes correntes do cristianismo podia implicar o patíbulo, mas as suas crenças num juízo final marcado com toda a precisão para 1666 e a sua religiosidade moralista são abafadas pela sua curiosidade em desvendar os segredos do mundo natural. Daniel torna-se colega e amigo de Newton, e trabalha de muito perto com ele, participando no mundo fervilhante de descobertas científicas dos membros da academia real, participando na incipiência do mundo moderno.

Quicksilver socorre-se do dinamismo da Inglaterra do final do século XVII, com as suas guerras com a Holanda pela supremacia dos oceanos, com a instabilidade política de uma corte sujeita aos caprichos dos monarcas, com a peste que assolou Londres e o grande incêndio de 1666 que devastou as cidades, com o surgimento de uma economia global propiciada pelas colónias do lado de lá do atlântico, dilacerada pelos conflitos religiosos entre católicos, protestantes e puritanos, onde uma incipiente bolsa e incipientes depósitos de valores estão a dar origem ao sistema bancário e financeiro. Um mundo novo que nasce, onde os chamados filósofos naturais proclamam a superioridade do empirismo sobre a ciência aristotélica.

Conforme convém ao início de um grande ciclo, Quicksilver inicia-se in media res, já nos primeiros anos do século XVIII, quando Daniel vive retirado em Boston, tentando criar o instituto de artes tecnológicas do Massachussets numa clara oposicão à sabedoria aristotélica defendida pelo colégio de Harvard (Stephenson sabe-se divertir com piadas muito arcanas). O elusivo Enoch Root convence Daniel a regressar à Europa, com o fim expresso de unir o fosso entre Newton e Leibniz. Daniel era amigo pessoal de ambos os cientistas. Quicksilver resume-se ao embarque de Daniel a bordo do Medusa, comandado por um ferrenho capitão holandês e perseguido por uma frota de piratas ao longo da costa da Nova Inglaterra. Mas o livro não se resume a uma récita de aventuras navais; a presença de Daniel a bordo do navio dá-lhe tempo para reminiscências, e são essas longas reminiscências que nos levam ao caldeirão fervilhante da Europa do século XVII. Quicksilver fala-nos da génese da cultura científica, e detém-se no momento em que o Medusa escapa aos navios do pirata Barba Negra. O que é que se segue? Bem, o ciclo barroco é uma história global, e o volume seguinte recupera Shaftoe como um vagabundo pelas terras da Europa. Não me surpreende que algures para o meio do ciclo Goto Dengo surga envolvido numa conspiração destinada a expulsar os jesuítas do Japão, fechando o país ao resto do mundo mas mantendo as novas tecnologias que os Portugueses introduziram no país do sol nascente. Mas para isso, há que ler os restantes sete livros do ciclo.

Leram bem. Sete livros.

A crítica que mais se lê a Quicksilver é a sua minúcia. Stephenson fez um trabalho monumental de preparação para estes livros, e isso nota-se numa prosa cheia de erudição onde Stephenson tenta pintar de forma extremamente pormenorizada o mundo de meados do século XVII - uma tarefa nada fácil, e precisamente o ponto em que o livro perde o seu apelo de massas. Se Cryptonomicon já era minucioso, Quicksilver leva a minúcia à exaustão, o que não o torna uma leitura particularmente fácil. E detalhado e abrangente como é, Quicksilver não passa de um pormenor do gigantesco diorama que é o ciclo barroco.

Quicksilver é um livro que me divide. A sua minúcia torna-se enfadonha, mas o seu objectivo de mostrar como nasceram as ideias que torneiam a nossa sociedade é simplesmente fascinante.