terça-feira, 17 de outubro de 2006

Em Greve

Google News | greve de professores O google agrega aqui as notícias que vão sendo publicadas ao longo do dia.
SPGL | conheça os seus direitos O impedir do direito à greve é impensável, mas nunca se sabe...


Hoje, conforme prometi, aderi á greve. Aderir a greves é sempre algo que faço com extrema relutância, não pelas óbvias razões financeiras mas sim pelo espírito que tenho incutido de cumprimento dos meus deveres e responsabilidades. Nos anos que já levo de professor, contam-se pelos dedos de meia mão as vezes em que aderi a greves. Umas vezes pareceram-me prematuras, outras demasiado específicas. E há sempre aquela velha questão de greves coladas a fins de semana, que não são exactamente um abono em termos de opinião pública. Mas desta vez aderi.

Em parte as minhas razões prendem-se com as propostas aberrantes de alteração do estatuto da carreira docente (ECD). Não que eu seja contra alterações à nossa carreira, mas sou contra o aproveitamento de hipoteses de melhorar a qualidade para fazer retroceder o estatuto profissional a níveis antediluvianos em nome de ideologias economicistas.

Um caso típico é o da progressão na carreira - até agora, a progressão era automática, dependendo apenas de três factores: do tempo de serviço - independentemente da qualidade desse serviço; da apresentação de um relatório; e do acumular de créditos em acções de formação - num sistema de formação que eu sempre entendi como uma perfeita palhaçada, em que tudo estava virado ao contrário, pois creio que se procuramos formação é para nos aprofundarmos nos nossos campos científicos e pedagógicos e não unicamente para passar o tempo e ficar com o certificado para o almejado crédito. A atitude da minha classe perante a formação sempre me deixou envergonhado - e que me perdoem os bons formadores que tive nas acções de formação que frequentei e delas saí com novos conhecimentos, que escolhi precisamente pelas suas qualidades científicas. Mas a conversa surda, que todos sabemos mas não dizemos, é que a maior parte das acções são "da treta", do "blá blá", do eduquês. Alterar isto, exigindo maior rigor e uma reformulação do sistema de formação? Sou a favor. Infelizmente a proposta ministerial envolve sistemas de quotas e critérios pouco transparentes onde a ideia de mérito é deturpada para encobrir a compressão e a impossibilitação do acesso à progressão na carreira. A distinção entre "professores" e "professores titulares" é aberrante. Quanto ao sistema de formação contínua, as alterações são meramente cosméticas. Aí pouco se mexe, senão lá se vão os fundos do Prodep que financiam a formação contínua.

A proposta de alteração do ECD também inclui alterações no ingresso à carreira, alterações essas que são impostas após a entrada ao serviço dos novos professores. Ou seja, após quatro anos de estudo numa escola superior de educação, onde aprende e é avaliado pelas suas qualidades científicas e pedagógicas, um professor em início de carreira volta a ser testado. Para que serve então o sistema de formação de professores? O que uma medida destas esconde é o reconhecimento das inúmeras falhas do sistema de formação de professores, assente em escolas que proliferam em cada capital de distrito e que vão alegremente formando docentes sem se darem ao trabalho de adequarem a sua oferta às reais necessidades do mercado. Quanto à qualidade da formação nas escolas superiores, eu tenho as minhas dúvidas, mas isso sou eu que tive na ESE que frequentei uma sólida formação pedagógica... e uma nula formação na àrea científica a que se destinava a minha formação. Só quando cheguei ao terreno percebi as minhas lacunas, e tenho trabalhado muito ao longo dos anos para assegurar uma sólida base científica ao meu trabalho docente. Algo que já deveria estar assegurado como pedra basilar da minha formação. Mas enfim, não posso generalizar a todas as escolas superiores a medíocre experiência que tive na escola que me formou e diga-se em abono da verdade que tenho encontrado muitos novos professores com uma sólida formação e um dinamismo que me levam a pensar que as coisas estão a melhorar no sistema de formação de professores. Mas aqui, mais uma vez, pouco se altera - a proposta do ministério não modifica nada ao sistema, que sempre vai beneficiando a economia local das localidades onde estes estabelecimentos proliferam - casas alugadas a estudantes sem recibos e logo livres de impostos, empregos prestigiosos como docentes do ensino superior para os sicofantas dos caciques locais, enfim, nas economias lucrativas não se mexe. E impedir o acesso à profissão aos recém formados é uma medida estatísticamente brilhante. Resolve-se assim o problema do excesso de oferta de professores - só o são quando passam no exame, e se não forem colocados não entram para a estatística do desemprego como professores desempregados, expressão que sempre cai mal.

Também sou a favor de outras alterações de raiz ao nosso modus operandi. As aulas de substituição e o prolongamento dos horários escolares são medidas necessárias, e reflectem o real papel da escola-instituição na nossa sociedade contemporânea, que hoje é mais do que uma simples instituição de transmissão de conhecimentos ("simples", entre aspas). Não creio que se tenha que ter medo destes novos papeis, antes que são oportunidades de prestar serviços públicos de maior qualidade. As escolas não são depósitos de crianças, e temos aqui a oportunidade de lhes dar formação que ultrapassa o âmbito dos programas de ensino, de uma forma gratuita, conforme previsto na constituição. A imparável vida contemporânea faz-nos saudades dos velhos tempos em que as crianças tinham tempo livre e não estavam constantemente a ser sobrecarregadas com actividades. Mas este é um daqueles factores inevitáveis, como a proliferação nuclear ou as alterações climatérias. Reflecte a evolução e a maior complexidade da nossa sociedade. Não vale a pena ficar parado com saudades dos velhos tempos, há que gerir as transformações sociais. Este vácuo que tem até agora existido tem sido bem aproveitado pelo mundo obscuro dos ATLs (muito lucrativamente) e de forma escandalosa no pré-escolar, onde as lacunas na rede pública permitem os excessos financeiros impostos aos pais de crianças que não têm outras opções para deixar os filhos enquanto trabalham.

Se bem que a experiência de dar aulas de substituição é terrível. Já a senti na pele. Mas isso acontece porque não temos uma cultura de dever. Perante uma aula de substituição, os alunos pensam "que chatice, e eu que já tinha coisas tão fixes para fazer com este furo", não necessáriamente num português tão correcto. Não seria isto coisa a repensar, talvez envolvendo animadores sociais e culturais, que andam tão arredados das escolas?

Tenho também uma razão mais visceral. Em virtude de ter a carreira congelada há ano e meio, com mais um ano anunciado e com a certeza que só em ano eleitoral a coisa muda, virtude da caça o voto, a única coisa que vejo crescer nas minhas finanças são os preços dos bens, os preços dos combustíveis e a prestação da casa. Só vejo cada vez mais... menos. Não me importo que me exigam mais trabalho, mas queria um salário justo pelo trabalho que desempenho.

Outra razão que me faz aderir à greve são as implicações das reformas estruturais que nos estão a ser impostas pela filosofia ultra-liberal que estende os seus tentáculos através dos sistemas políticos. É uma filosofia cujos contornos se notam a nível mundial, que assenta na primazia do lucro como principal factor de desenvolvimento, e que vê as políticas sociais não como um benefício à sociedade mas sim como um fardo. O lucro não se adequa à prestação de cuidados de saúde universais e gratuitos. O lucro não se adequa à ideia de uma educação universal egualitária que dê às crianças, a todas as crianças, independentemente da sua classe social, uma sólida base de formação e acesso a oportunidades de um melhor futuro. Querem fazer-nos crer que os serviços públicos são fardos, apontando repetidamente as suas ineficiências e afirmando que os privados fazem melhor. As políticas sociais estão sob ataque cerrado, desde o sistema de reformas ao sistema de saúde, em nome de uma apregoada eficiência que se traduz na privatização do espaço público. As políticas sociais devem ser sustentáveis, é certo, mas também têm de ser defendidas da rapacidade economicista.

Assiste-se também à progressiva demonização do funcionário público, visto como aquela criatura disforme que das trevas dos poeirentos gabinetes suga os recursos da nação enquanto dedica o seu magro trabalho a dificultar a vida àqueles que querem trabalhar. É uma imagem que convém a quem faz jogos de manipulação de opinião pública ligados aos interesses económicos. Mas pensem nisto: o polícia que torna as ruas mais seguras pondo a sua vida em risco, e cuja ausência é logo notada, é funcionário público. O enfermeiro que o ajuda quando vai ao centro de saúde, é funcionário público. O médico, que se calhar o atende mal ou pouco educadamente porque já está de banco há mais de vinte horas, é funcionário público. O professor, que se esforça no seu trabalho por assegurar não só ao seu filho, mas a todos os filhos, a formação necessária para a oportunidade de um melhor futuro, é funcionário público. E deixo de fora todos os outros que, é certo, não produzem. É verdade, nós não produzimos. Propiciamos a produtividade. Parece um argumento bizantino, mas pensem no impacto da ausência de policiamento no comércio, só como um exemplo de entre muitos possíveis. Os meus alunos, se o meu trabalho e o dos meus colegas for bem sucedido, construirão um Portugal melhor.

Prestamos um serviço público. Não quero com estes meus possivelmente pouco lógicos argumentos afirmar que não tenhamos de mudar, de melhorar, de nos tornar-mos mais eficientes. Mas não podemos ficar parados enquanto se desmantela o tecido social que assegura à nossa sociedade a igualdade de oportunidades tão necessária ao nosso mundo complexo, tecnológicamente avançado e democrático.