quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Terra dos Mortos

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Nos tempos da velha senhora, vulgo tempos do estado novo, era práctica comum na literatura portuguesa a criação de obras mais ou menos metafóricas que permitissem uma reflexão sobre o verdadeiro estado das coisas, ultrapassando a barreira de uma censura que condicionava as publicações ao moralismo do deus-pátria-família. Este jogo de gato e do rato conseguiu ver publicadas obras que marcaram a época, como o Kurika de Henrique Galvão ou Aqui há luar de Sttau de Monteiro. O jogo baseava-se no dizer o indizível e reflectir o irreflectível através de metáforas subtis, de códigos sub-entendidos que permitiam aos leitores perceber que a historieta sobre o leão na selva era antes uma reflexão sobre a falta de liberdade num país subjugado a uma ditadura parola e retrógrada.

Mudam-se os tempos, mas ao contrário do que escreveu o poeta, não se mudam as vontades. Nos dias de hoje há certos discursos, certas ideias que não fazem parte do mainstream. São ideias que nunca são debatidas nos eternos debates televisivos, que não são abordadas por uma imprensa de massas cada vez mais sujeita aos interesses comerciais. Nos dias de hoje não existe uma censura política, mas pode-se dizer que vivemos tempos de censura económica - ideias e reflexões que não fazem parte do espectro lucrativo são relegadas para lá de uma cultura de massas cada vez mais banal. Não são esquecidas, ou apagadas por censores dedicados. São apenas esquecidas pelos meios de comunicação de massas.

Por esta altura já devem estar a perguntar-se o que é que isto tem a ver com zombies. Especialmente porque os zombies são um dos pontos mais baixos da história do cinema. O filme terror que envolva zombies é logo equacionado com cinema visceral, que troca a subtileza pelas vísceras e pelo sangue que escorre abundantemente. Os argumentos típicos dos filmes do género recorrem sempre à luta pela sobrevivência de humanos desesperados no meio de um surreal apocalipse em que os mortos regressam à vida... e tudo o que desejam é devorar os vivos.

Na sua forma mais simples, o genero zombie já abre o campo à reflexão sobre o terror moderno - as histórias de terror que nos entretêem têm as suas bases bem enraizadas nos temores que monopolizam a nossa sociedade. Quando o nosso horror é caracterizado por hordes sub-humanas que ameaçam levar a nossa normalidade, o nosso modo de vida numa enxurrada violenta que literalmente nos devora, não é muito difícil perceber que o nosso verdadeiro medo é o medo dos outros - dos àrabes, dos emigrantes, dos africanos, enfim, de todos aqueles que embora sendo seres humanos como nós, não os percepcionamos como uns de nós. Antes, olhamos para os seus costumes, modos de viver e cor da pele como uma ameaça visceral à nossa forma de estar na vida. O zombie é apenas uma projecção destes medos. Nestes tempos modernos, já não temos medo da escuridão ou do oculto e do desconhecido. O nosso horror é o do que é diferente de nós.

Mas é possível ir para além disto. É possível pegar nas metáforas que nos aterrorizam e utilizá-las como uma forma de reflectir nos males sociais, nas hipocrisias da história e da política, e fazê-lo de uma forma subtil, que ultrapassa os censores dos departamentos de contabilidade e libertam no mercado de massas obras culturais que sob a capa do divertimento nos fazem reflectir. Neste campo, a obra de George Romero tem sido seminal, desde os lendários Night of the Living Dead ou The Crazies. Justamente apontado como realizador de filmes de terror, Romero utiliza os filmes viscerais em que se especializou para nos oferecer metáforas da nossa sociedade contemporânea. Neste seu último filme, Terra dos Mortos, Romero não foge à sua regra, e oferece-nos um filme de acção tenebrosa, violento e recheado de efeitos especiais, que funciona como uma perfeita metáfora do nosso mundo contemporâneo.

Terra dos Mortos passa-se alguns anos depois do apocalipse zombie descrito dos seminais filmes Night of the Living Dead, Dawn of the Dead e Day of the Dead. A humanidade sobrevivente já aprendeu a fazer frente à ameaça dos mortos-vivos, e congrega-se em cidades bem defendidas, rodeadas de hordes de mortos-vivos em diferentes estados de putrefacção. Sobrevive-se à custa da eterna pilhagem das terras infestadas de zombies. Terra dos Mortos leva-nos a uma cidade cujo nome não nos é divulgado, e centra-se nas aventuras de Riley, inventor de um veículo que permite a pilhagem do exterior da cidade em segurança, e de Cholo, um lacaiao ambicioso de Kaufman, o governante da cidade, que esconde a sua ditadura por debaixo da capa tecnocrática de uma administração corporativa. No centro da cidade ergue-se Fiddler's Green, local onde vivem as élites num luxo semelhante ao dos tempos antigos. Aos habitantes de Fiddler's Green nada lhes falta, vivendo isolados do mundo exterior no seu condomínio fechado, aceitado as ingerências de Kaufman em troca da segurança, da estabilidade e da prosperidade. Á sua volta ergue-se a verdadeira cidade, uma cidade de miséria, violência e vícios perigosos, controlada por Kaufman, que se serve dos habitantes mais empbrecidos para manter o status-quo. As vozes dissidentes são silenciadas em segredo por Cholo e pelos seus sequazes, assassinadas e despejadas junto com o lixo da cidade - os zombies. Cholo ambiciona viver em Fiddler's Green, mas vê as suas pretensões desfeitas por Kaufman, que o descarta. Cholo vinga-se, roubando a base do poder de Kaufman - o veículo armado conhecido como Dead Reckoning, e utilizando-o como arma para chantagear Kaufman.

Riley está cansado de viver por entre os restos decadentes da vida civilizada. Compreendedo que não há esperança, que a catástrofe não tinha ensinado nada à humanidade, sempre incansável na sua cupidez, Riley decide abandonar a cidade em busca do isolamento nas florestas do Canadá, mas é forçado por Kaufman a recuperar o Dead Reckoning. Aproveita a oportunidade para escapar, levando consigo Charlie, o seu fiel companheiro, , uma prostituta que salvara da morte às mãos de zombies como forma de entreter o público num clube sedicioso, e de um curioso samoano que é o único sobrevivente dos soldados que Kaufman enviara com Riley.

Entretanto, nas cidades devastadas infestadas de zombies, algo de diferente se passa. As hordes de mortos-vivos começam a manifestar sinais de inteligência e capacidades de aprendizagem. Liderados por Big Daddy, um antigo empregado de uma gasolineira, os zombies estão a tentar regressar a um triste simulacro das suas antigas vidas, numa espécie de danse macabre putrefacta. Atacados por um raide de pilhagem encabeçado pelo veículo Dead Reckoning, os zombies começam a perseguir os atacantes, acabando por atacar a cidade, destruindo assim o reinado de Kaufman.

Terra dos Mortos é um filme que não desilude. Apesar de ser uma mera continuação dos pesadelos clássicos de George Romero, Terra dos Mortos não nos poupa ao comentário sobre uma sociedade americana (e, de certa maneira, mundial) afluente e conservadora, sujeita ao discurso político de responsáveis corruptos, que apenas pensam na sua riqueza e não hesitam em mergulhar o seu mundo na mais profunda violência para conseguir os seus fins. A produção pouco interessa, apenas a pilhagem vale. À sua volta, os seus concidadãos mergulham na pobreza, defendidos por cada vez mais omnipresentes forças militares das forças tenebrosas que se escondem além das suas fronteiras. O próprio Romero afirmou que este filme era uma crítica aberta ao presidente Bush, ajudado pela representação fria e distante de Dennis Hopper enquanto Kaufman, abertamente inspirada na personalidade de Donald Rumsfeld, o todo-poderoso secretário da defesa americano, ao qual podemos creditar o atoleiro iraquiano ou os voos secretos da CIA. Dennis Hopper, a meio do filme, pronuncia de forma aterrorizante uma simples frase: "we don´t negociate with terrorists". Dita no meio do caos de uma cidade invadida, dentro de um luxuoso escritório, esta frase resume bem o fio condutor das actuais políticas que conduzem o mundo. Neste filme, os zombies são os bons da fita.

Como simples filme de zombies, Terra dos Mortos também não desilude. A acção esperada da sobrevivência na luta contra os mortos-vivos não nos desaponta, e os fãs de gore ficam certamente fascinados pelas fabulosas cenas com os cadáveres ambulantes. Os técnicos de efeitos especiais fizeram um trabalho simplesmente alucinante.

Terra dos Mortos ultrapassa largamente os horizontes do seu género cinematográfico. Agora, só o tempo dirá se ganhará o estatuto de filme de culto atribuído aos anteriores filmes da saga dos mortos-vivos.