sexta-feira, 8 de setembro de 2006
Ruins
Warren Ellis
Warren Ellis | Bibliography
A suspensão da incredulidade exige uma forte dose de realidade simulada. As melhores obras de ficção fascinam-nos por isso - mostram-nos mundos possíveis e plausíveis, ou até mesmo implausíves, que se assemelham muito ao nosso. É essa semelhança que lhes dá um toque de verosimilhança, não muita, mas a suficiente para suspendermos a nossa descrença e mergulharmos profundamente nos mundos imaginários da ficção.
É no mundo dos comics que esta ideia se torna particularmente importante. Não pode haver nada mais inverosímil do que um mundo de super-heróis, mutantes e alienígenas com os seus fatos de cores garridas e as suas capacidades que oscilam entre o fabuloso e o simplesmente bizarro. Mesmo assim, quando mergulhamos nos comics, percebemos que há um esforço permanente por parte dos criadores (e das editoras) de criar coerência e continuidade nos mundos fabulosos das aventuras dos super seres. Esse esforço gera uma realidade paralela semelhante à nossa, cuja diferença são as aventuras que dão o mote às histórias. Esta sensação de realismo, conjugada com a estatura icónica de personificações dos mitos mais profundos da alma humana presentes nos mitos modernos dos super homens, dá aos comics o seu aspecto viciante e mergulha-nos eficientemente nos seus mundos imaginários.
Nem sempre foi assim, claro. Os comics, na sua génese, eram extremamente simplistas, mas souberam evoluir com os tempos. Se o tema base continua a ser simplista - homens e mulheres musculados que lutam contra o mal em trajes garridos, a forma de contar as histórias tornou-se mais complexa, menos estanque, mais interrelacionada - e logo, mais apelativa, despertando e mantendo a nossa curiosidade.
O mundo dos comics é essencialmente dominado por duas editoras, a DC e a Marvel. Há outras editoras, houve outras editoras, mas a dominância destas duas é quase absoluta. A DC é a editora dos grande personagens icónicos, do Batman, do Superhomem, de super-heróis que são verdeiramente mais do que humanos. Em oposição, a Marvel é a editora dos heróis humanos, imperfeitos apesar das suas grandes capacidades, a editora do Capitão América, do eternamente problemático Homem-Aranha, ou dos lutadores contra a xenofobia que são os X-Men. Em termos de postura editorial, a Marvel é conhecida pela sua insistência nas interacções dos seus personagens, enquanto a DC é conhecida por gostar de arriscar. Qualquer comic com selo Marvel envolve sempre os personagens habituais, enquanto a DC - especialmente debaixo da colecção Vertigo - edita obras de culto para além dos habituais comics. É à DC que devemos obras seminais como o Monstro do Pântano sob a égide de Alan Moore, o Sandman de Neil Gaiman ou The Invisibles de Grant Morrison, entre outras obras de culto.
Warren Ellis pertençe aquela geração de argumentistas britânicos que conquistou o mundo dos comics graças ao trabalho de Alan Moore (e Moore é um nome incontornável no mundo dos comics). Ellis não é pêra-doce - basta uma leitura ao seu blog, Warrenellis.com, para perceber que é um autor capaz de pegar nos detalhes mais bizarras que circulam pelo espaço de ideias que nos pervade, metamorfoseando-os em histórias viscerais. Transmetropolitan, uma das suas melhores obras, conta-nos as aventuras de Spider Jerusalem, um jornalista cínico que acompanha as tragédias de um mundo decadente num futuro perfeitamente fora de controle.
Ruins é a aplicação do ideário escatológico de Ellis ao universo Marvel. Em Ruins acompanhamos a saga de um jornalista que atravessa a américa em busca de um vislumbre de um mundo de maravilhas - marvels, no inglês original. A sua realidade é uma realidade tenebrosa, em que os personagens super-humanos da Marvel são meras sombras da sua realidade. É um mundo onde o Capitão América e o Homem de Ferro foram aniquilados por um governo americano que combate uma rebelião na Califórnia. Um mundo onde um louco patético pensa que a sua bengala se trasforma em martelo, transformando-o em Thor, encarnação de um deus nórdico. Um mundo onde os mutantes sofrem os horrores das suas mutações descontroladas. Um mundo onde a explosão de raios gama que gerou o Hulk não gerou um monstro verde, mas sim uma massa viva de cancros e tumores. Um mundo onde Peter Parker, ao ser mordido por uma aranha radioactiva, contraiu uma doença altamente contagiosa que o metamorfoseia numa aberração disforme. Em suma, um mundo sem heróis, onde os super-seres são perseguidos, depravados, aberrações genéticas, verdadeiros monstros. A busca pelo vislumbre não leva a nada - o jornalista morre, contaminado pelo vírus que devastou Peter Parker, sem conseguir mais do que coleccionar um bestiário de horrores, uma imagem-espelho distorcida do mundo de cores limpas garridas do universo Marvel - marvel, de maravilhas.
For ever event, there exists in potential an mirror event, an exactly opposite possibility. If the world you know is one of marvels, where men without fear face horror unarmed, and women if flight ride the upper reaches of the weather... then, only a misstep or a stopped heartbeat away, is a world of ruins. São estas as palavras com que Ellis inicia os dois capítulos desta tenebrosa minisérie. As ilustrações de Cliff e Terese Nielsen, sujas e difusas, capturam na perfeição o espírito imperfeito da interpretação de Ellis sobre o mundo Marvel.