sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Descida aos infernos

Não há grandes dúvidas de que os condomínios são um dos piores pesadelos da vida moderna. A ideia em si até é boa - a ideia de um grupo de pessoas unidas pelo interesse comum que trabalha para o bem de todos. Infelizmente, como todas as outras boas ideias do género, a sua aplicação não é nada do que se espera. A natureza humana é implacável. Somos todos demasiado egoístas, demasiado ciosos das nossas vontades, demasiado mesquinhos. Ponham um grupo de pessoas diferentes a viver num mesmo local e forçem-nas a reunir para discutir os seus interesses e só conseguem uma coisa: observar o que a humanidade tem de pior em pleno funcionamento. Qualquer reunião de condóminos é um festival de nepotismos, avidez e mesquinhice. Entre os vizinhos há sempre ambientes de cortar à faca, repletos de olhares de ódio e palavras ambíguas que traem o profundo desprezo que todos sentem uns pelos outros. Todos contam histórias de horrores dos condomínios. Até agora, ainda não conheci ninguém que estivesse contente com o seu condomínio. Mesmo assim, continuamos a sujeitar-mo-nos a esta autêntica tortura. É a lei.

Isto sou eu a queixar-me. Há mais de ano e meio que estou na nada invejável posição de administrador de condomínio. Enquanto simples condónimo, a minha relação com os restantes vizinhos era a melhor possível. Eu ignorava-os cordialmente e eles faziam o mesmo. Mas desde que descobri as delícias das administrações que a coisa tem piorado. Há coisas inevitáveis - os vizinhos que não pagam as taxas de condomínio, os contactos com os construtores corruptos e negligentes dos prédios, o eterno sentimento de se ter uma responsabilidade adicional que não se pediu para a ter. Isto é apenas a pontinha do iceberg. Há pior, conforme tenho descoberto. Neste ano e meio já me aconteceu um pouco de tudo. Já contemplei as profundezas dantescas da fossa séptica, com o desentupidor a apontar-me a massa informe de restos de preservativos, papel higiénico e bonecos de plástico que entupia a fossa e provocava verdadeiros mares de merda na garagem, e a dizer-me que o seu trabalho não era exactamente regar jardins e que por isso tinha um preço. Paguei e nem reclamei preços. Ser acordado em manhãs de ressaca pela equipe de manutenção de portões de garagem que já se chamou um ou dois dias depois, e que nos obrigou a ficar à espera sem nos avisar de quando vinha. Estar a dormir uma sesta num feriado e ser acordado por um vizinho que em pânico descobriu a sua casa inundada devido a canos entupidos. Ser uma pessoa que tem sempre as suas contas em dia e chegar à companhia das àguas para questionar o pagamento de uma pesadíssima factura de àguas e ser por sua vez questionado porque é que o condomínio durante três anos nunca se tinha dado ao trabalho de informar a empresa de uma avaria no contador que se traduzia num consumo de àgua à borla - os chicos-espertos das anteriores administrações estavam bem cientes do problema, mas demasiado encantados com aquela tão lusa ideia de que os enganos a nosso favor não são para ser corrigidos. Ainda balbuciei que era um recém-administrador, mas não me livrei dos olhares dos funcionários. Lá se foi a minha reputação. Ser alvo da chacota de electricistas, canalizadores e afins por não fazer ideia onde ficam quadros de electricidade, controlos de bombas, temporizadores de iluminação, uma vez que os distintos anteriores administradores simplesmente nos passaram para a mão um molho de chaves mas não estiveram para se dar ao trabalho de mostrar para que é que serviam, ou onde se localizam os sistemas básicos do prédio. Até agora, pensava que a pior que me tinha acontecido tinha sido a do vizinho que, dono de uma lata invejável, aproveitou uma altura em que eu chamei electricistas ao condomínio para me vir pedir se não os podia levar ao seu apartamento, para arranjar uns interruptores que estavam a estragar-se. Deixava-me as chaves de casa e tudo. Até os electricistas se riram desta pretensão.

Mas ainda não tinha visto tudo. Há poucos dias aconteceu-me pior.

Ao chegar a casa, vindo da praia, dei com um carro estacionado mesmo em frente ao portão da garagem. O carro era de uma vizinha recém-chegada ao prédio que por qualquer razão que não descortino mas que possivelmente tem a ver com uma qualquer deficiência mental acha que o lugar perfeito para estacionar é precisamente em frente a uma garagem. Por detrás deste carro, estava parada a banheira do vizinho que mais ares de importância se dá. Á janela, a mulher do dito vizinho vigiava, à espera de qualquer coisa. Ainda pensei em avisar os prevaricadores para retirarem de lá os seus carros. Mas a minha namorada, mais experiente do que eu nesta coisa dos interrelacionamentos humanos, avisou-me asisadamente de que eu não era porteiro. Assim, esperei para ver.

Momentos depois o primeiro carro recolhia à garagem. Minutos a seguir, toca a minha camapaínha. Era o dono do segundo carro. A troca de palavras foi rápida. Em poucos minutos, foi-me questionado sobre o que se passava. Estava um carro há horas a bloquear a entrada, dizia ele, e ele não tinha chamado a GNR para retirar o veículo porque achava que isso era da competência da administração. Exigia medidas. Dizia que o seu carro tinha estado duas horas ao sol e exigia ser ressarcido dos prejuízos - ou pagavam os vizinhos ou pagava a administração, e se tal não fosse feito escreveria uma carta registada. Em suma, exigia que eu estivesse de plantão para lhe resolver os problemas. Só lhe faltou perguntar-me o que é que eu andava a fazer enquanto isto se passava, e porque é que não estava presente na minha casa para estar ao seu dispor. Isto tudo, claro, dito com o tom de voz reservado a um empregado ou a um criado.

Fiquei possesso. Mas não disse nada. Obviamente, não voltarei a dirigir palavra a esse vizinho, e se ele o voltar a fazer serei eu que tratarei de chamar a GNR - mas por causa dele, por injúrias e ofensas pessoais. Vou optar pelo simples corte de relações, e continuar a minha vida, sem ligar a provocações de gente menor. O que dá vontade é de partir para a violência, dar cabo da cara ao homem, ou então descer ao seu nível. Mas não é assim que as coisas se resolvem.

Mas continuo possesso. E cada vez mais farto desta tortura que são os condomínios.