quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Vislumbres

Tradicionalmente, a barbearia sempre funcionou como o clássico ponto de encontro masculino, onde os homens se reuniam para discutir os assuntos do dia e dar dois dedos de conversa sob a égide das tesouras do barbeiro. Mais do que um espaço onde se presta um serviço, a barbearia era um ponto de encontro, onde as novidades tinham a primazia sobre o aparo do cabelo ou o corte da barba. No nosso mundo hipertecnologizado de hoje, os velhos espaços foram substuídos por espaços mais funcionais, agradavelmente decorados e onde se prestam todo o tipo de serviços destinados a refinar os sentidos. Mas o atendimento é despersonalizado, feito por profissionais frios, que meramente prestam um serviço. O ponto de encontro desvaneceu-se, e hoje um homem vai ao cabeleireiro para ficar com um penteado mais de acordo com os ditames da moda, e talvez mesmo para entrar nesses territórios até muito recentemente apanágios femininos da limpeza de pele e arranjo das unhas.

Tempos modernos. O que antigamente era sinal de uma educada efeminação, ou da mais terra a terra mariquice, agora é sinal de conhecimento do corpo. De estar em sintonia com os tempos e com os ideais de beleza. No fim de contas, temos de parecer bem, já que não temos tempo para revelar aquilo que realmente somos.

Cá por mim o corte clássico basta-me. Ainda resisto, ainda frequento as tradicionais barbearias. Sei perfeitamente que não encontrarei requintes capilares nem tratamentos elegantes. A tradicional barbearia resume-se à tesoura, ao pente e à lâmina da navalha de barbear. O cabelo fica sempre curtinho e a pele a arder depois da passagem do algodão com alcool para suavizar o raspar da navalha. Não saio do barbeiro com um visual de capa de revista, mas saio de lá com uma coisa muito mais importante.

Aqui na Ericeira vou sempre à Barbearia Neves. É uma casinha de recanto, ali na travessa da Misericórdia, nos caminhos de quem vai para o Algodio. Não há que enganar: nas paredes brancas delineadas pelo típico azul ericeirense estão desenhadas as ferramentas do ofício. Depois, é entrar e esperar, porque o Sr. Pedro, que herdou uma casa com décadas de tradição, só aceita por ordem de chegada. A espera é sempre longa, mas vale a pena.

Nesta terra descaracterizada pelo turismo e pela rapacidade imobiliária, são poucos os locais onde forasteiros como eu podem observar e tentar compreender a vida ericeirense. A verdadeira vida, não os ritmos burgueses de trabalho-café-apartamento que tanto caracterizam o meio por onde me movo. Ir à barbearia é para mim uma experiência para ser apreciada de olhos e ouvidos bem abertos. Enquanto espero a minha vez, fico a conhecer as personagens das histórias da vila. Fico a saber os mexericos, fico a saber como vão os resultados do futebol - não dos grandes clubes, mas sim daqueles que realmente interessam, os clubes daqui do concelho. Fico atento aos dramas e às alegrias, e gostaria de ter alma de escritor para saber relatar as histórias e as sensações.

O Sr. Pedro, jovem barbeiro que é também desportista que mostra orgulhosamente os seus troféus, está sempre disponível para dois dedos de conversa enquanto trabalha. Quem passa e é de cá não hesita em entrar, nem que seja para se mostrar deixando no ar um sonoro bom dia. À volta de um sui generis barbeiro-desportista tatuado e amante de heavy metal congrega gente nova e velha, velhos pescadores, reformados que passeiam os seus dias, amigos sempre prontos para patuscadas. Pela barbearia passa toda a vida tradicional da vila, que se vai mantento, resistindo aos desafios da modernidade.

O que é que preferem? Um visual à moda, para exibir em público, ou um olhar sobre uma janela que nos permite vislumbrar vidas simples mas fascinantes, compreender a textura viva da vida nesta terra da qual tanto gostamos?