segunda-feira, 3 de julho de 2006

Além

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J.-K. Huysmans, Além, Assírio e Alvim, 2006
Wikipedia | J. K. Huysmans
Gutenberg | Là Bas
Huysmans.org

Há no lado obscuro do mundo um poder de atracção que nos mesmeriza. Pessoas de outra forma absolutamente normais, incapazes de conscientemente fazer qualquer mal à mais pequena das criaturas, exibem uma pouco saudável curiosidade pelas façanhas de assassinos em série ou torcionários históricos. Almas que se enchem de dor com picadas de insecto ou pequenas queimadelas fascinam-se com as descrições horrendas dos piores tormentos que o homem é capaz de criar para fazer sofrer o próximo.

Joris-Karl Huysmans foi um singular romancista francês do século XIX, que se iniciou no romantismo mas que depressa encontrou a sua voz na literatura decadente de final de século. Para Huysmans, os estímulos decadentes aos sentidos não foram suficientes; rende-se ao misticismo e converte-se ao catolicismo. O seu estatuto de literato decadente arrasta-o para o panteão dos escritores malditos, mas a pouca informação disponível sobre este singular homem de letras leva-me antes a crer que está a ser arrastado para o panteão dos escritores esquecidos.

Além é uma obra que nos obriga a pensar na eterna luta entre o bem e o mal, e no porquê do nosso fascínio, enquanto homens de bem, pelo mal. Durtal, o protagonista do romance, estuda o mal absoluto na mítica figura de Gilles de Rais, o torcionário medieval considerado um dos absolutos da violência sádica. Gilles de Rais, após uma fulgurante carreira militar, retira-se para os seus domínios e dá largas ao mais puro sadismo. Nos tempos medievos, sem psicólogos para analisarem os padrões de comportamento, Gilles foi considerado um demónio com vestes humana e consequentemente queimado nas fogueiras dos tribunais eclesiásticos. Durtal inquieta-se com a vida dessa figura histórica, tentando compreender como é que um homem passa de héroi nacional a louco demoníaco para, no fim, aceitar a punição pelos seus actos como uma redenção que lhe abre as portas do céu (note-se que Além foi escrito antes de Freud). Intelectual recatado, Durtal partilha os seus momentos com Des Hermies, um curioso médico de espírito aberto que o leva frequentemente à casa de Carhaix, o sineiro da igreja de St. Sulpice. Carhaix é o típico bom cristão, honesto e acolhedor, que sente a religiosidade como algo puro e simples e desconfia de misticismos e interpretações bizantinas. Carhaix dedica-se de corpo e alma à sua profissão, que ama acima de todas as coisas e que cumpre com uma dedicação quase monástica.

Durtal estuda o mal, e enche-se de curiosidade pelo mal medieval que lhe é contemporâneo. Na Paris representada em Além, a alta sociedade delicia-se com as missas negras do cónego Docre, um satanista convicto. Durtal, através dos amores infieis com Hyacinthe Chantelouve, mulher de um colega intelectual de Durtal, consegue assistir a uma das famigeradas missas satânicas. Sem saber o que esperar, acaba por se agoniar com o ridículo da cerimónia escatológica, que tenta com tanta veemência tornar-se sacrílega que cai no mais perfeito ridículo. Durtal desilude-se com os satanistas e com toda a cambada de misticistas à sua volta. Estes tentam atingir o profundo conhecimento do mal, imitando velhos rituais medievais, mas tudo o que conseguem é provocar paroxismos de loucura nos seus seguidores.

Os amores infiéis de Durtal representam aqui um terceiro aspecto do mal, o mal pessoal, a nossa capacidade interior para violar as regras sociais a favor do nosso prazer. Inicialmente, Durtal entusiasma-se com a perspectiva da conquista galante. Todo o jogo de encontros e desencontros excita-o, mas quando finalmente Hyacinthe se lhe entrega Durtal sente-se invadido por um profundo tédio, rejeitando logo qualquer aprofundamento da relação.

Para a nossa era viciada em horrores e imune a monstruosidades, Além não choca nem surpreende, mas em 1891 criou sensação, especialmente por causa da sua descrição da inenarrável missa satânica. Ler Além deixa-nos com a sensação que Huysmans viva um estado de alma em transição - Além lê-se como uma reflexão sobre o bem e o mal por parte de alguém que se sente fascinado pelo mal e pelos seus aspectos, mas que também se sente a transcender essa atracção em direcção ao extremo oposto - a religiosidade mística.

O livro termina com profundas diatribes contra o amor pelo oculto, uma das características dos decadentes. E termina com uma frase deliciosa, que não resisto a citar. Após uma tirada de Des Hermies sobre a decadência das gerações futuras, Durtal termina o livro respondendo-lhe "vão fazer o mesmo que os pais e que as mães deles"..."Encher as tripas e despejar a alma pelo baixo-ventre".