quinta-feira, 6 de abril de 2006

Earth

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Contrary Brin - O blog de David Brin

Tenho a certeza que quando James Lovelock formulou a sua Hipótese Gaia ele não estava a pensar nisto. A hipótese Gaia supõe a Terra, todo o planeta, com todos os seus ecossistemas, como um organismo vivo, que utiliza as ínfimas variações naturais do clima em conjunção com os habitats naturais e os imperativos biológicos da vida animal para se auto-equilibrar. Foi uma hipótese nascida nos anos 70, profundamente ecológica, que tenta explicar como, no meio do mais perfeito acaso evolutivo, a vida na terra parece fazer sentido.

David Brin pega neste pressuposto, mistura bem misturadinho com um cocktail de ideias que vão da física ao futurismo puro, e cria em Earth uma história de excelente ficção científica passada num futuro próximo que, após esquecidos os pormenores empolgantes das aventuras vividas pelos personagens, nos deixa a pensar em como Brin nos está a avisar sobre o nosso futuro, enquanto espécie dominante sobre este planeta.

Earth é contada a partir do ponto de vista de vários personagens. Alex Lustig, o verdadeiro herói da história, é um físico que busca a eterna promessa da física - uma fonte de energia barata, limpa e inesgotável. Vira-se, assim, para um campo implausível de pesquisa - a geração artificial de singularidades, mini-buracos negros, que contém a promessa de se tornar essa fonte miraculosa de energia. claro, gerar buracos-negros tem os seus riscos, e a primeira grande experiência de Alex, uma experiência semi-ilegal financiada por generais sul-americanos, corre mal quando o buraco negro que gerara se escapou das câmaras de confinamento para o centro da Terra. Lustig é perseguido por Pedro Manella, um ubíquo repórter que tem a estranha capacidade de estar sempre em todos os lugares onde algo de importante acontece. Manella sabe tudo, conhece todos, e denuncia Lustig, que se torna um pária nos meios científicos. Preocupado com as consequências de um buraco negro dentro do planeta, Lustig une-se a um bando de idiossincráticos cientistas neo-zelandezes, liderados por George Hutton, um milionário com vários doutouramentos em ciências geológicas e uma vida paralela nos meios tradicionais do espiritualismo Maori. Começam a perscrutar o interior da terra, e fazem duas espantosas descobertas: já existia um outro buraco negro no interior da terra, cuja lenta expansão está a acelarar e ameaça devorar o planeta; e os alinhamentos dos impulsos gravitacionais podem ser modulados pelos buracos negros, dando assim aos cientistas uma arma que poderá salvar ou aniquilar o planeta - um gazer, equivalente gravitacional do raio laser. Lustig e Hutton constroem uma série de estações em vários pontos do planeta, para gerarem raios gravitacionais que possibilitem o desalojar do buraco negro de dentro do planeta, numa tentativa de salvar a Terra. A localização de uma destas estações, em África, requer a ajuda da avó de Lustig, a bióloga Jen Wolling, responsável por uma teoria que estabelece definitvamente a hipótese Gaia como uma realidade, tornando-se assim o ídolo da comunidade ecologista radical. O activar dos raios gravitacionais provoca o caos na superfíice terrestre. Resta, apenas, saber quem terá gerado o segundo buraco-negro.

No espaço, Teresa Tikhana, piloto de vai-véns espaciais, vê um raio gravitacional arrastar uma estação espacial a velocidades sub-lumínicas em direcção a Sirius. Suspeitando de intervenções pouco claras por parte das agências governamentais e das suas experiências secretas, Teresa junta-se ao grupo de Lustig como uma espiã na NASA, capaz de tentar descobrir as intenções de Glenn Spivey, um todo-poderoso coronel dos serviços secretos que se pensa estar por detrás do segundo buraco negro. Mas a verdade é mais bizarra: o buraco-negro descoberto nas entranhas da terra foi gerado antes da ciência humana ter capacidade de gerar singularidades. De facto, o buraco-negro encontra-se sob a superfície terrestre desde 1904, desde o famoso e misterioso incidente de Tunguska. A conclusão de Lustig é que o buraco negro representa uma arma intergaláctica, enviada por uma civilização alienígena para aniquilar a espécie humana.

Spivey intervém, e coloca a organização de Lustig sob alçada governamental. Os rumores sobre a pesquisa de raios gravitacionais espalham-se, e várias super-potências começam a criar as suas próprias instalações de raios gravitacionais. As intenções de Spivey são simplesmente de estudar bem os efeitos desta nova tecnologia, antes de a entregar aos tribunais científicos, que determinarão se a tecnologia deve ser estudada ou não. Spivey pretende estabilizar o segundo buraco-negro, impedindo-o de se expandir, e utilizar os raios gravitacionais como uma forma de assegurar o acesso barato ao espaço.

Na véspera da divulgação do segredo dos buracos-negros e dos raios gravitacionais, uma misteriosa organização secreta liderada por uma Daisy Eng, ecologista fanática apoiada por uma estranha coligação que envolve um estado de párias que flutua nos oceanos, defendido pela marinha de guerra suiça, entra em acção, atacando as estações de raios gravitacionais com uma rede secreta. Segue-se um duelo entre Lustig, que isolado na ilha da páscoa combate contra todas as estações gravitacionais do planeta, uma vez que as estações pertencentes às redes governamentais haviam sido controladas pelas proezas informáticas de Eng, hacker entre hackers. Eng pretende aniquilar a vida humana sobre o planeta, reduzindo a população de dez mil milhões a um número que ela considera ecológicamente aceitável, de umas dez ou vinte mil pessoas. No meio do cataclismo gravitacional, o impensável acontece. Jane Wolling morre, na estação gravitacional sul-africana, e a sua consciência funde-se aos estados excitados de supercondutividade sob a superfície terrestre e ao poder informático da rede de computadores que dinamiza o planeta (Brin escreveu este livro antes do surgimento da internet como força de mudança). A hipótese gaia realiza-se inteiramente. O planeta ganha consciência, tornando-se uma entidade viva e consciente, capaz de agir em simbiose com todos os seus componentes - os biomas, a eco-esfera, a humanidade.

No final do livro, um final feliz graças a esta intervenção deus ex machina de um planeta consciente, Pedro Manella, o repórter que está sempre em todo o lado, surge como um alienígena benevolente capaz de colocar em marcha os acontecimentos que levaram ao despertar da consciência planetária.

Por interessante que seja o enredo, as capacidades literárias de Brin não deixam que o livro se torne demasiado interessante. As personagens são perfeitamente bidimensionais, e o livro arrasta-se, página a página, revelando-se a passo de caracol. Um exemplo é o sentido de urgência trágica de Lustig e companheiros ao saberem que a Terra será aniquilada no espaço de dois anos - simplesmente, não existe. O pânico que uma ideia destas despertaria não é levando em conta por Brin.

O grande valor de Earth está no mundo que Brin gerou como cenário da sua história. No fundo, o mais importante em Earth é este cenário - um futuro extrapolado a cinquenta anos a contar dos anos 90, uma Terra pré-apocalíptica em que as nações, pressionadas pelo aquecimento global e pelo esgotamento dos recursos naturais, se unem definitivamente à ONU para policiar o planeta, perseguir poluídores e destruidores do que resta da natureza, e procurar soluções que permitam a sobrevivência dos dez mil milhões de seres humanos sobre o planeta. A pressão sobre o ambiente levou à extinção na natureza de inúmeras espécies animais, preservadas em verdeiras arcas de noé, ecologias fechadas que preservam um punhado de espécies para um futuro mais risonho. As catástrofes ambientais sucedem-se - a grande parte da floresta da amazónia é agora um deserto, a tundra siberiana e canadiana, bem como o extremo sul do planeta, são as novas fronteiras de terra fértil e cultivável. O degelo antártico atingiu níveis tão elevados que as terras costeiras de todo o planeta já se encontram submersas - o Bangladesh já não existe, bem como a Flórida, com a cidade de Miami submersa, e o continente antártico está prestes a ser aberto à colonização humana. Apesar de tudo, ainda restam recursos suficientes para manter um nível de vida decenta para a maior parte da humanidade. As soluções tecnológicas parecem surgir a tempo de ajudar a travar o declínio, mas a verdade é que a humanidade está condenada - a pressão sobre os cada vez mais escassos recursos naturais é tanta que a menos que se retroceda fortemente nos níveis de vida, a humanidade tem apenas duas gerações antes do colapso final. Apenas a vasta rede de computadores representa um ponto brilhante nos destinos e trabalhos de uma humanidade ameaçada de extinção.

É um cenário familiar, não é? David Brin extrapolou brilhantemente em Earth todos os cenários ecológicos que já começamos a viver. Para além de romance de ficção científica, Earth é uma mensagem de cuidado e responsabilidade sobre o futuro do nosso planeta. Porque, na realidade, nós não teremos nenhum espírito que surja do nada para nos salvar.