terça-feira, 21 de março de 2006
Night Shift
Página oficial do escritor
Night Shift Short story collection
A minha relação com a obra de Stephen King sempre foi ambígua. Habituado e amante como sou da elegância literária de autores como Poe ou Lovecraft, o comercialismo, visceralidade e vulgaridade da prosa de King sempre me deixou inquieto perante os seus livros e contos de terror. Por outro lado, a vulgaridade das ideias-base de King também contribui para esta minha ambivalência. Ao ler Poe, mergulhamos na elegância romântica; ao ler Lovecraft, a solene imaginação barroca das trevas profundas envolve-nos. Mas o horror de Stephen King é um horror terra a terra, baseado na vulgaridade e na visceral banalidade.
No entanto, Stephen King é sinónimo de literatura de terror. Cada um dos seus livros vendeu quantidades obscenas de exemplares. Stephen King é um caso de sucesso, e para isso certamente que contribuiram todas as características que me deixam ambivalente perante a sua obra. King é um escritor acessível, de leitura fácil, e exímio na arte de segurar o leitor, página a página. Mesmo que, chegando ao fim das páginas, não estejamos mais... aterrorizados, ou iluminados, por isso, a verdade é que a prosa de King nos obriga a ir sempre mais uma palavra, mais uma linha, mais uma página antes do cansaço nos vencer.
Com o passar do anos, King foi-se apurando, e encontrou uma veia literária muito própria, que explora a curiosa sociedade da Nova Inglaterra rural e piscatória.
Editado em Portugal, a obra de King tem um sucesso moderado. O facto de ser um autor de terror mainstream afasta os leitores mais fanáticos deste género literário das suas obras - estes preferem leituras mais arcanas. Por outro lado, o público ao qual se destina o género de prosa de Stephen King está em portugal demasiado ocupado a ler a chamada literatura light, de capas de cores garridas, conteúdos cheios de ideias inconsequentes (ou perfeito vácuo de ideias) e autoras colunáveis, para se dedicar à literatura de best sellers.
Night Shift é uma das suas colectâneas de contos que não se encontra editada em Portugal. Por um lado, ainda bem. Night Shift contém uma série de contos perfeitamente mediocres, cuja leitura é desperício de largura de banda no nervo ocular. Mas Night Shift vale, no entanto, por conter alguns dos contos mais arrepiantes de Stephen King: The Boogeyman, Trucks, Sometimes They Come Back e o fabulosamente arrepiante Children of the Corn. São estas as pérolas que permitem suportar a banalidade dos contos coligidos em Night Shift. Todos estes contos são, à sua maneira, inesperados. The Boogeyman surpreende pela sua perfeita inversão final, em que toda a premissa do conto é virada perfeitamente do avesso. Trucks revoluciona o conceito de terror: aqui, o que assombra, o que provoca o terror, não são almas do além ou seres diabólicos. Trata-se apenas de uma estranham mutação, que faz com que as máquinas ganhem vontade própria. Trucks vale pela industrialidade do seu terror. Sometimes They Come Back é um conto clássico, uma história de terror às voltas com assombrações assassinas muito bem contada. Finalmente, Children of the Corn é para mim a peça de prosa de Stephen King que conjura verdadeiramente aquele ambiente inquietante de estranheza que caracteriza um bom conto fantástico. A assombradora descrição dos estranhos acontecimentos passados no meio de uma paisagem infindável de campos de milho, onde um estranho culto de crianças decretou que a partir dos dezoito anos todos os rapazes e raparigas devem ser sacrificados a um estranho ser que caminha por entre os campos de milho gera na nossa mente algumas das imagens mais inquietantes que a literatura de terror consegue gerar.
Night Shift é uma leitura que implica muito pouco esforço mental; perfeita, assim, para uma altura onde o trabalho se avoluma e algo é necessário para distrair a mente das pressões do dia a dia. As pequenas pérolas do conto de terror contidas no livro são um bónus, que faz com que Night Shift seja um livro a que mais tarde se regresse, passando por cima do mediocre e apreciando profundamente o que o livro tem de bom.